A Casa Tombada como dispositivo de resistência

Ângela Castelo Branco
Giuliano Tierno de Siqueira

Quando pensamos em um dispositivo, nos referimos imediatamente à palavra casa. Quando dizemos resistência, estamos nos referindo à Casa como um dispositivo de produção de existência, de reexistência, como um lugar o cultivo da sensibilidade e de processos de subjetivação fora dos binômios compra/venda, crédito/débito.

Em 2015, a partir de uma trajetória de ações de arte e educação em diversas instituições públicas e privadas, decidimos que era hora de pensarmos em um território menos institucionalizado, ágil do ponto de vista da articulação entre projetos e pessoas (sem tantas negociações burocráticas), um lugar onde poderíamos articular uma rede capaz de pensar nas relações de solidariedade entre estudo acadêmico, prática artística e produção cultural com vistas à intervenção social.

Até então não havia um projeto sonhado ou desenhado para tirarmos do papel. Havia apenas e tão somente uma voz que latejava insistentemente:

  • Há um imenso desconforto quando as nossas palavras vão para um lado e as mãos querem ir para o outro. Quando sobrepomos a razão ao nosso corpo somos atingidos por uma espécie de um mal-estar ancestral/espiritual.
  •  Seria possível não separar o fazer do pensar e do sentir? A única saída para o excesso de representação e para essa espécie de morte em vida é uma ética do acontecimento. Somos capazes de viver essa convivência ética-estética-política-poética?

 

 

Estacas de um’A Casa, estacas em nós

 

Nessa época, Giuliano Tierno já coordenava o curso de pós-graduação em A Arte de Contar Histórias, que acontecia em um outro espaço. A convivência com os participantes desse curso, somado ao quintal de nossa residência que era visitado por muitos jovens de um curso de formação cultural que a Ângela Castelo Branco coordenava, nos dizia que precisávamos ir mais além. Tal como o poema de Arseni Tarkoviski, que diz: “agarra-me a vida (…) mais tem de haver mais”. Foi essa fome que nos tomou. O desejo guloso que diz Deleuze.

Exatamente no dia 18 de julho de 2015 inauguramos A Casa Tombada. Ocupamos / alugamos uma casa antiga e destruída – uma iniciativa privada – uma casa em ruínas (paradoxalmente patrimônio da memória da cidade de São Paulo) e aí iniciamos a experiência de realizar cursos de pós-graduação (a partir de uma parceria com uma instituição de ensino superior), e também encontros com pessoas com experiências potentes na cidade, todas essas ações apoiadas no primeiro DNA de nossas práticas: a palavra e o exercício da narrativa (oral e escrita) como um poderoso instrumento político para a descolonização de idéias e dos modos de produção de pensamentos.

Enquanto reformávamos A Casa Tombada, uma mudança se operava em nós concomitantemente. Os corpos institucionalizados que trazíamos aos poucos tiveram que dar espaço para um tempo outro, mais expandido. A ideia de terminar um trabalho no prazo recorde, a ideia da eficiência e da gestão, aos poucos foi sendo substituída pela necessidade de ter um corpo disponível para receber, para conversar, para olhar, para cuidar, para gestar.

Para habitar uma casa é preciso seguir a autoridade da casa. Não a autoridade de um espaço rígido, fixo, imutável, que está esperando que entremos nele e o ocupemos. Pelo contrário, a autoridade de uma casa se dá pela capacidade que ela tem de permitir que as potências e impotências da vida aconteçam. Ou seja, foi preciso encostar a nossa língua na língua da casa. Numa casa pode faltar luz, água, chover dentro, acabar o gás para o café. Numa casa pode se plantar o próprio chá, fazer um bolo, um pão, colher tomates. Numa casa chegam pessoas de modo inesperado. Há que se parar para receber quem vem de longe e de surpresa. Há que se parar para convidar o outro para entrar.

Aos poucos, a reforma da Casa era também uma reforma nossa, íntima. De descobrir que não impomos uma forma específica à matéria. Na época, não tínhamos palavras para nomear esse afeto, mas agora sabemos, junto do antropólogo Tim Ingold[1], que isso tem um nome. Nenhuma matéria é passiva ou inerte. É preciso atentar para os modos de existência dos materiais, pois eles também fazem coisas conosco. Não somos nós que impomos formas aos materiais. Os materiais, junto conosco, estão em movimento, em relação. Há que se seguir as suas forças, compor com os fluxos. Recuperamos pisos originais, madeiras que já não existem mais e que contam a história de exploração de trabalho do nosso povo, recuperamos tijolos aparentes de um barro maciço que atualmente fazem reluzir ainda mais o sol, retiramos as camadas de tintas das escadas. O teto foi reconstruído, as memórias do gesso preservadas, as árvores secas começaram a renascer.

O que era sala permaneceu sendo sala. O que era cozinha permaneceu sendo cozinha. O quintal permaneceu sendo quintal. Quarto dos fundos como quarto dos fundos. Os móveis, tal como os de uma casa. Nada no “lugar de”. Não queríamos o simulacro – marca da vida mercadologizada – o “como se fosse uma casa”, queríamos um’A Casa. Assim como na literatura, não nos interessa tanto a analogia, ou seja, uma palavra no lugar de outra, mas a imagem poética. A capacidade que a língua tem de abrir novos modos de dizer, não apenas de comparar as palavras.

É comum recebermos pessoas que se afetam com a beleza dessa casa. Sua capacidade de receber a luz, o sol, a circulação de ar. Assim como as sombras, as infiltrações, as pequenas mortes diárias. Dizem que sentem uma boa vibração. Todos temos desejos de cuidar e sermos cuidados. Nós humanos temos uma incrível capacidade de zelar, de amar “de frente” como já nos ensinou Maturana, de fazer brotar. Nós reconhecemos quando alguém que diz está dizendo a verdade, como também já nos disse Rancière[2]. Nós reconhecemos quando um lugar é um lugar.

 

Nós reconhecemos quando um lugar é um lugar

A palavra lugar nomeia uma superfície em que podemos nos mover.  Onde o que conta é qualidade de nossa ação. O lugar não é medido pelo número de horas que passamos nele ou por quanto pagamos por ele, mas pelo quanto e com que vitalidade podemos nos mover com ele. Isso é o lugar. Por isso chamamos A Casa Tombada de lugar e não de espaço. Criar, estudar, viver, conviver, ter prazer, pensar, conversar, trabalhar, descansar em um mesmo lugar é a nossa maior contravenção. E essa é a maior oposição à necropolítica que quer produzir corpos fragmentados com trabalhos e exigências sem sentido, sem rede de proteção.

A possibilidade de materializar o sutil, de exercer o cuidado diariamente é a nossa maior afronta ao macropoder. O convívio estético, a aposta nos afetos do corpo criam novas conversas, despertam novos desejos. Costumamos dizer que esse é um lugar de partilhar aprendizados em que se entra com o corpo inteiro, não apenas com a cabeça. E com a paisagem que cada um é. Ou seja, podemos nos sentir a vontade para trazer os filhos, os pais, o animal de estimação, esquentar a comida, deitar no chão, pegar uma manta para espantar o frio, assumir nossos desencontros com o conhecimento, nossos rudimentos, reintegrando todos esses movimentos da vida à produção de conhecimento, inclusive cientifico e acadêmico.

Portanto, na história do surgimento d’A Casa afirmarmos que o lugar e os materiais continuam tendo um papel vital para nosso projeto. Possuem um papel de invenção nos modos de existências singulares.

Um outro ponto importante dessa malha de afetos é a afirmação da amizade entre a oralidade e a escrita em todos os trabalhos que desenvolvemos. E essa afirmação se dá por contágio, pela experiência. O que nos interessa é uma escrita próxima dos sulcos da fala e uma fala próxima dos riscos da escrita. Os encontros de narração oral são invadidos por textos escritos e os ateliês de escrita não existem sem as histórias orais.

Consideramos que a oralidade e a escrita são necessidades humanas. Portanto, os cursos de pós-graduação que oferecemos possuem encontros  de abertura entre a oralidade e a escrita.

 

Crença na potência e (impotência) das palavras

Buscamos o dizer como a afirmação da vida, do que respira. E, para arrancar o que precisa ser arrancado do silêncio, é preciso deixar-se invadir pelas notas, pelas cintilâncias, pelos engasgos, pelo dizer poético, mais do que pela ideia de linearidade e de representação do real. Afirmamos insistentemente uma crença na potência das palavras. E, como elas não garantem e nem dizem tudo, como a linguagem não coincide conosco, trata-se de uma opção constante pela fragilidade, pelo fracasso, pela busca de algo que estará sempre mais além. O amor pelas palavras que a todo tempo nos desestabiliza pode nos ajudar a sair da lógica do poder e do excesso de verossimilhança.

Temos uma síntese do que escrevemos acima: estávamos em reforma em um mês de férias e o teto de uma das salas se rompeu e caiu. E algo escorreu na parede. Percebemos que era mel, pois havia ali, no vão entre o teto da sala de baixo e o chão da sala de cima um vão, onde viviam abelhas jataís. Fomos pesquisar a história dessas abelhas e descobrimos que elas possuem um significado muito importante para os povos originários. As abelhas jataís simbolizam o inicio e o fim de tudo. Começamos o ano letivo contando essa história para os alunos e oferecendo um mel para que todos pudessem provar. O mel não era das abelhas que encontramos ali naquele local, e também ninguém nos perguntou. Pois o que interessava naquele instante era essa abertura de real que esse acontecimento nos trazia. Ou seja, não interessa diferenciar ficção de não ficção, verdade de não verdade.

 

Materializar a força poética latente

O gesto de escrita também está muito presente n’A Casa, criando uma arquitextura. São tentativas de materializar uma força poética latente, de conversar por entre as paredes, as lousas e os vidros, para além da fala cotidiana. Geralmente não são textos assinados, para não criar o caráter de citação. São textos “capturados” pelo instante poético.

Assim como a presença do livro também importa. Há uma biblioteca de livros essenciais n’A Casa, mas as suas prateleiras não permanecem muito tempo arrumadas, pois o convite que os livros nos fazem o tempo todo é para o toque, para o movimento, para o abrir. Buscamos contaminar todos os ambientes com livros das mais diversas naturezas, como iscas, como portais. Os livros e a casa são mais que suportes infinitos. Condensam forças de vida, materializam o sensível.

Assim como o corpo-carne e as suas ligações. O corpo d’A Casa evoca outros corpos-presença dentro dela. É impossível entrar n’A Casa sem ser visto, sem olhar e ser olhado, sem percebê-la com os cinco sentidos. Esse corpo é deslocado das partituras previsíveis de movimentos pré-definidos ou institucionalizados. Esse corpo é convidado a comportar-se de outra maneira. Esse corpo é convidado a ler deitado na rede, esse corpo é convidado a tocar uma flor, esse corpo pode silenciar na janela. Esse corpo é corpo sensível, aquele que dá passagem ao gesto. Que pode materializar a poesia do corpo: o gesto. O gesto é aquele que interrompe a cadência de atos que transportam uma intencionalidade e uma comunicabilidade prévia. O desejo do gesto é apenas ser gesto, é apenas dar-se a ver.

 

Pensamentos semeados no chão

Nos cercamos de pensamentos semeados no chão. E que semeiam mais chão. Como a pedagogia da autonomia, defendido pelo professor Paulo Freire, entende que autonomia significa, em primeiro lugar, entender que “ninguém educa o ninguém e que as pessoas se educam em comunhão, compartilhando”.

Como o “lugar de fala”, da filósofa Djamila Ribeiro, que busca afirmar que, para realmente enfrentar a desigualdade, será necessário e vital observar e atacar o racismo estrutural da sociedade brasileira e que é essencial que os brancos compreendam sua brancura e entendam que um homem mulheres negras negras falam de sua subjetividade e são elas, não os colonos brancos, que devem falar.

Como a suspensão do gesto imperialista lembrado por David Kopenawa, indígena Yoanomami: “Antes que os brancos aparecessem na floresta, distribuindo seus nomes aleatoriamente, tínhamos os apelidos que nossos parentes nos deram”, em seu livro A Queda do Céu.

A casa atua como prática para o exercício da intimidade e do comum, no campo do binômio público/privado que já conhecemos na história do macropolítico, especialmente apropriado pelo sistema neoliberal.

Pois são as experiências que devem nomear o evento e não vice-versa; essa tem sido a palavra-chave da nossa atuação. É por isso que entendemos A Casa Tombada como um dispositivo, com inspiração na pesquisa de Michel de Foucault: dispositivo deriva de uma palavra grega oikonomia que nos faz pensar nela como uma ontologia e uma práxis, ou seja, que inclui um conjunto de maneiras de viver, pensar, de dizer e de sentir o mundo, que busca transpor/traduzir concretamente um conjunto de valores de uma certa maneira de conceber o real, não totalizante, não única, não garantida, mas apaixonante.

 

[1] Ingold, Tim. Estar Vivo. Ensaios sobre o movimento, conhecimento e descrição. São Paulo: Vozes, 2015.

[2] Rancière, Jacques. O mestre ignorante. Cinco lições para a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.