Biografêmeas: um carteado com o passado feminino

por Sandra Lessa

 

Biografêmeas é um processo criativo que lê o passado e recria nossas histórias de vida. Tem por objeto final uma vídeo-carta feita por cada participante destinada às suas ancestrais.

O desenvolvimento se dá através de um jogo de cartas de um antigo baralho onde os corpos femininos foram pornografados, eu refiz carta por carta ressignificando essas imagens e libertando-as de uma perspectiva patriarcal, ou seja, atribuí a elas identidade e história. Da mesma maneira nossas memórias podem ser recriadas libertando-as de sua hegemonia.

Uma pessoa sem passado é uma pessoa sem futuro e para garanti-lo precisamos manter nossas subjetividades, nossas visões femininas, nossas poéticas sobre a existência. Através das cartas vamos escutar vozes antigas criando uma ressignificação no presente.

Conheça as mitopoéticas de algumas cartas:

 

Coringa: A livre

 

 

Carrega como símbolo passos bambos da poética do samba como política.

Nos oráculos um coringa também é nomeado de “O Louco”, como isso não cabe a uma mulher batizei-a de “A Livre”. Das muitas vezes que chamamos uma mulher de louca estamos querendo dizer LIVRE.  Como liberta e libertária A Coringa certamente é transgressora. A alegria entre os dentes não esconde gargalhadas.

Como coringa que é ela se adapta a qualquer naipe de qualquer jogo. Faz par com rainhas, valetes e reis se for preciso.

Feita em passos que desviam de buracos é ‘a-bem-suada’ pelo movimento erótico.

Sua escola é de samba.Seu bloco de construção é bloco de rua.

A bamba liberta. A bamba inspira. Está presente até hoje nas ruas e nas histórias de nossas ancestrais. Quantas avós tinham gargalhadas de encher a casa, carregavam transgressões escondidas e adaptaram-se a situações inesperadas.

Pela reinvenção das nossas memórias: Livre é a vovozinha!

 

A mulher que Sabe

 

 

Dona de antigo conhecimento “A Mulher que Sabe” esparge sabedorias.

Sabe que o conhecimento é a força de vital mais poderosa, pois é a única que liberta.

Sua força é incomodada e venta paradoxos e contradições.

A Rainha de Espadas nos abençoa com a dúvida.

Busca os conhecimentos que vagueiam perdidos e sufocados em antigos palimpsestos. E então reescreve as histórias reinventando-as.

Sabe que a escrita é parceira da memória e que essa inscrição no tempo pode nos livrar do esquecimento de nossa identidade. Nas lacunas da história ela evoca a poesia como reconstrução do vivido. 

“A Mulher que Sabe” tem uma escuta apurada, ouve cacos e os restos como ninguém.

Seus versos e verbos nos livram dos aprisionamentos da margem da história e inscreve no tempo seres novos e libertos dos cárceres sociais.

Combater o esquecimento é o seu destino e ela o cumpre com o prazer de uma Rainha. Ela escreve o passado, alarga o presente e tem o futuro como meta de sua espada. Tem como perspectiva uma profunda responsabilidade com a vida e sua memória.

Podemos encontrar sua presença nas ancestrais narradoras de histórias, ou nas que guardaram objetos e zelaram fotografias e recordações, essas que sempre sabem algum detalhe das histórias. Ela reside na lembrança que temos de nossas professoras, nas antigas transgressoras que decidiram estudar, nas que se envolveram em políticas e escreveram o mundo pela perspectiva feminina.

 

A Mulher Totem

 

 

Sagrado símbolo ancestral a Mulher Totem narra memórias enterradas que vagueiam aqui em Abya Ayla.   Ela fala da necessidade de emergir seres que resistiram aos cacos e restos da violência colonial.  Encanta através da linguagem dos pássaros soprando em nossos ouvidos a restituição de nossa memória originária.   Íntegra e entregue a natural essência da vida, o seu corpo ocupa naturalmente um estado superlativo, ou seja, um estado de primavera.  Sua estética colorida rompe a terra sem vergonha ou culpa, pois na sua língua essas palavras nunca foram inventadas.  Grita o jorro da árvore e desabrocha exata no que não é óbvio, porque é vida. Sua poética é a do rito e da celebração afirmativa da vida.  Exige a nossa reverencia a Terra antiga que pisamos como ser divino, pois nós passamos, mas ela permanecerá.  De suas plumas pluriversas emergem a verbos em defesa da vida. Cria e crê na estética das cores. Se o teu Mel inspira o desejo de reexistência é porque entre o zumbido e a flor fica guardado o contato “Mel-tafísico”.

Entre nós, a sua força mora nos olhos de nossas ancestrais que nos ensinaram a olhar o pôr-do-sol e a ver imagens nas nuvens. Ela vive na vida das mulheres biólogas, das parteiras, das que trabalham no roçado. Está ali na força das artesãs e das narradoras fabulistas que nos contam dos seres encantados da floresta. Ela está no ventre de nossas anciãs latinas e no sangue de nossos ciclos mensais que não nos deixa esquecer do real calendário transitando dentro de nós. Salve as velhas guardiãs da Terra!

Para quem quer saber todas as informações deste percurso de reescrita autobiográfico:

https://acasatombada.amarelinha.cc/25-01-22-biogra%c6%92e%cc%82meas-um-carteado-com-o-passado-feminino-com-sandra-lessa/

Para quem deseja conhecer o que é uma vídeo-carta:

https://www.youtube.com/watch?v=q-R1uEGPbVM&t=32s

Para quem quer conhecer as cartas do baralho refeitas:

https://www.instagram.com/ssandra_lessa/

 

 

Sandra Lessa é mestra em Artes da Cena pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da Unicamp, onde desenvolveu a pesquisa “O Narrador está em quem ouve: o estudo de histórias de vida no trabalho do ator-performer” (NEA Edições Acadêmicas: 2015). Sua pesquisa percorre o caminho da escuta, escrita e narração biográfica, acolhendo as ficções que residem nas memórias pessoais. Trabalha com o Instituto Museu da Pessoa e a Associação Arte Despertar. Escreveu o livro “O Farol das Ilhas: histórias de vida para além de um hospital – memórias de pacientes do Hospital das Clínicas de São Paulo” (Arte Despertar: 2009). Organizou os livros “E Era Tudo Verdade: coletânea de histórias de vida (Biblioteca Hans Christian Andersen: 2016) e “Narradores de Vida” (Museu da Pessoa: 2017). Como artista percorreu o Brasil, Europa, América Latina e México, pesquisando e atuando com a escuta poética para o encontro com o outro.

 

A partir do dia 25 de janeiro, Sandra Lessa estará n´A Casa Tombada Nuvem com o curso Biografêmeas: um carteado com o passado feminino. Para saber mais, clique em: https://acasatombada.amarelinha.cc/25-01-22-biogra%c6%92e%cc%82meas-um-carteado-com-o-passado-feminino-com-sandra-lessa/