Por Camila Feltre
Me lembro bem o dia que a Cris, Cristiane Rogerio, coordenadora da Pós-graduação O livro para a infância, me ligou e contou que haviam mudado parte do nome da Pós. A partir de agora seria: O LIVRO PARA A INFÂNCIA: PROCESSOS DE CRIAÇÃO, CIRCULAÇÃO E MEDIAÇÃO CONTEMPORÂNEOS. Uau!
O que estas três palavras podiam nos dizer? Dizer sobre um curso, sobre um percurso de pensamento e sobre nós? Elas, as três palavras, me provocavam a pensar, mas ficaram aqui, comigo, e eu, carregando-as por onde ia. A cada conversa com a Cris, ouvindo professores da pós e no diálogo com os estudantes, surgiam novas formas de pensar, criávamos juntes outras relações, ligamentos e os conceitos se alargavam, as fronteiras que as separam foram ficando mais frágeis, borradas, sem limites definidos.
Criação. Circulação. Mediação. Foi a convivência com a Turma VII, que senti estas palavras – ou estes conceitos? – mais maduras. Posso dizer que caíram do pé.
Arrisco dizer um momento, um marco que me revelou estas novas descobertas. O momento que tirei o véu foi um exercício proposto aos estudantes. A inspiração foi este trecho do livro Os Dias e os Livros – Divagações Sobre A Hospitalidade da Leitura (Pulo do Gato, 2012), de Daniel Goldin:
Por trás de cada leitor há pessoas, presenças e ausências que os livros suprem ou recordam. Pessoas, corpos, gestos, modulações de voz, palavras e imagens. Pessoas que interagem com outras pessoas. (…) A relação com os livros não começa com a leitura, e os livros não servem somente para ler. São objetos carregados de valores afetivos, são objetos que cheiram, pesam, têm texturas, que são associados a vozes e a pessoas, que geram situações e que as recordam”.
Junto, havia a pergunta: Para você, como as palavras criação, circulação e mediação se relacionam nos processos contemporâneos? Há fronteiras muito delimitadas entre os três conceitos ou em determinadas situações eles se borram?
Cabia aos estudantes escrever livremente num fórum virtual. As escritas foram reveladoras: ficou visível a complexidade e potencialidade destas três palavras juntas, separadas, interligadas, como ponte, teia, círculo ou formando um triângulo. Surgiram imagens, formas, metáforas e perguntas sobre como elas se relacionavam com o livro para a infância.
Me deparei com múltiplos pensamentos, me levando a imaginar uma grande trança formada por estes três agentes, em que muitas mãos atuam neste gesto, se entrelaçam, se misturam, dão forma a movimentos, um processo que se retroalimenta.
Todo processo começa na criação? Como o acesso permeia toda a cadeia do livro-leitor? Existe forma ideal de circulação? Quando há circulação, estamos falando de mediação? Editor é mediador? Mediador é circulador? Quem cria: aquele quem pensa o livro ou quem publica? Mediação é criação no encontro com o livro? E o leitor, também vira criador e mediador?
Escutar os estudantes amplia meu pensar sobre a Pós: esse percurso de ensino que não apresenta limites pré-definidos, em que o pensar é obrigatório, o fazer perguntas é condição principal (Luiza Christov), que é sempre importante desconfiar do que se lê (Odilon Moraes), estar pronto pra aprender e ser surpreendido, porque é preciso estar apaixonado para apreender o mundo (Jorge de Albuquerque Vieira). Um aprender em coletivo! (Cristiane Rogerio).
Muitas perguntas, muitas relações, uma escrita tecida por muitos olhares, repertórios, de norte a sul do Brasil e de Portugal também! Em cada uma delas, pedaços de vida de quem a teceu, já que tudo o que acontece, acontece com nós, em nós, por causa de nós.
Como não estou falando sozinha, selecionei algumas frases da turma.
De imediato, a questão que me veio e da qual todas as esferas dependem – criação, circulação e mediação – foi o ACESSO. Quem escreve? Quem lê? Quem faz circular e a quem chega? Quem faz mediação e para quem faz?, Eunícia Barros Barcelos Fernandes.
Em relação as três palavras…Imagino uma grande teia, que o tempo todo aumenta de tamanho e vai crescendo para todos os lados, simultaneamente, Luiza Pacheco.
Embora cada um dos três elementos tenha sua especificidade, acredito que eles são interdependentes. Para mim, os processos de criação, circulação e mediação são agentes da literatura, ou seja, agem de forma a movimentá-la, transformá-la e (por que não?) bagunçá-la. Assim, quando um desses agentes atua sobre o universo da literatura, formam-se ecos que reverberam nas outras esferas e que, por sua vez, também produzem mais ecos… É dessa forma que vejo o percurso das tendências e escolhas literárias que fazemos (e que também é uma escolha política). Assim como a Literatura é uma definição histórica, o seu universo também reflete os movimentos e mudanças provocados pelos elementos que a compõem. Acho legal pensar nesses termos como um triângulo, em que todos os lados estão interligados e, quando há movimentação em um dos lados, os outros dois também se movimentam junto, Maria Carolina de Almeida Amaral.
… a interseção desses três conceitos se dá em grandes feitos artísticos, produzidos ao longo da nossa história, assim como também em territórios de ordem quase íntimos. Por exemplo: a criação infantil ganha novos sentidos quando intercambiada com o mundo e com outras crianças, isso é cultura da infância… porque a cultura é um palimpsesto… uma reescrita permanente de nossas produções, Julia Souto Guimarães Araujo.
…depois do processo de criação vem a circulação o fazer chegar palavras e cores construídas e costuradas, chegar, tocar, contar, deixar um pouco de você no outro, Gabriella Pereira Alves.
Criação, circulação e mediação como se misturam? Se misturam nas relações, nas experiências que o livro palavra, forma, cor, imagem, tamanho, cheiro, som, textura, narrativa, tempo, etc. traz/leva, transforma e é transformado, Silvia Leite.
O que me ocorre diante da articulação desses três elementos é que eles devem formar algo como um entrelaçamento em que um elo chama a presença do outro, como os “elos borromeanos” em que a retirada de um, desconecta os outros dois, Cláudia Costabile.
Uma expansão de consciência diante de toda a jornada, processos e agentes envolvidos, Adriana Medeiros Peliano.
Criar, circular, mediar! Verbos que me remetem imediatamente a ação! Movimento! Fluxo! São palavras que me levam para dançar! Imagino uma coreografia onde um passo leva a outro e os universos bailam como se tivessem nascido um para o outro. E não há nada que possa separá-los. Cada um na sua singularidade se integra com o outro e o resultado é encontro! Uma dança! E esses verbos quando ganham a qualidade de substantivos – criação, circulação e mediação – dão significado aos sentimentos, as ideias, à imaginação! São ao mesmo tempo ação e pensamento! Corpo e alma! Vida e sonho! Memória e presença!, Fabiana Campacci Fríscio.
Estou desde a primeira aula, quando o trinômio foi destacado, pensando na relação entre estas palavras: criação, circulação e mediação. Resolvi então tentar juntá-las através da metáfora da viagem como possibilidade de lazer e prazer. Parto da criação em que o artista planeja levar o leitor a um lugar desconhecido, muitas vezes pelo próprio autor, que começa a arquitetar através da tentativa e do erro possibilidades de transformar o nada em um universo com múltiplas portas de entrada. Mas não basta um lugar se o viajante não puder chegar até ele, não é mesmo? Daí a circulação, entendo como tudo que pode levar ao destino do livro: desde a editora, livraria, professores, distribuidores, divulgadores… Todos estes seriam os condutores, responsáveis por levar nosso viajante ao destino desconhecido. O mediador, que pode ser também um professor, além de conduzir, ocuparia a função de guia de turismo na nossa excursão. Tendo estudado antes os diversos caminhos que podem levar o leitor ao livro, pois deve ser um apaixonado pelo lugar que irá apresentar, o mediador não só introduz o ambiente: “esta é a casa em que vocês irão se hospedar“, mas também abre portas e janelas para que os viajantes se sintam mais arejados e possam, cada um a seu modo, aproveitar o máximo reinventando novos caminhos. Lembro que há um perigo no meio dessa história. A ponte entre o criador e o leitor é muito longa, por vezes leva-se anos a ser atravessada, mas se a viagem for mesmo boa, depois do encontro nunca termina, Marcia Cristina Silva.