por Ângela Castelo Branco
Estamos, sim, no deserto. Nada pela frente, nada atrás. Está incômodo. Se venta, se faz calor, se os joelhos doem, tudo pesa, grave.
Mas no deserto há a voz
-Voz que clama no deserto-
Grávida de oco, de ar comprimido na glote, de ar que sobe pela musculatura de um corpo cheio de tubos, vasos comunicantes, passagens.
Essa voz que clama no deserto, clama: estamos todos no deserto. Por isso, essa voz que não temos, que é silêncio mas não é muda, essa voz grunhido, animalesca, essa voz se solta da barriga dos sentidos, do ter que dizer,
essa voz que arranha o verniz dos móveis bem postos, a hierarquia dos bons discursos, do ter que ser, ter que ir lá e contar algo, da economia da mão que cuida mas que prende, essa voz que conhece nossos dentes, o nosso choro, aquela única vez em que suspiramos, essa voz que desarticula, desmorona e por isso mesmo, clama:
há uma voz antes da fala
há voz antes e além do falar
há uma energia que nos sonda, mais que as palavras, mais que o pensável, mais que o dizível.
Agora, exatamente, nunca precisamos tanto do deserto de cada um de nós, nunca precisamos tanto do toque dessa voz, nunca precisamos tanto da pergunta: com que voz falar da voz? com que nós falar de nós?
Essa nossa voz que não é uníssona, que pode todos os papeis, que veste todas as roupas, ainda assim permanece incapturável, incalculável, irreparável, antiga e presente, essa voz que é ato, o fato das coisas serem como são. topológica e apenas.
essa fenda voz
que se levanta e não se levanta
que não aceita e aceita
que recusa e não recusa
que chama
o que chama
como chama
e, sobretudo, ainda assim:
clama
clama
clama
(com Jean-Luc Nancy)