por Vilma Ribeiro
Preciso pedir licença para a memória desse querido e admirado escritor para tocar em sua obra. Um toque amoroso e despretensioso. Usando meu direito de leitora, pretendo dizer apenas dos afetos.
“Foi preciso deitar o vermelho sobre o papel branco para bem aliviar seu amargor.”
É com essa sentença cheia de sentidos que Bartolomeu Campos de Queirós inaugura seu livro “Vermelho amargo”.
O contraste do vermelho sobre o papel branco, é o contraste que acompanha a narrativa, que vai dizer da mãe que partiu, mas não levou o amor, ficou sobrando. Um amor à procura de um destino. Imbuído desse amor, o autor nos conta que com a ausência ganhando corpo, ele sofria de uma ausência presente que a cada dia tornava-se maior.
Ele captura o leitor para a experiência de encontrar beleza na dor e no sofrimento, a poética e o lirismo da narrativa é um convite a caminhar de mãos dadas com a fealdade e a beleza, dialogando com a alegria e a tristeza; nos remetendo a vivenciar no corpo os contrastes de viver e morrer.
A narrativa é enxuta e magistral, nada sobra, o vazio dos intervalos são alocados com precisão; propiciando um lugar de suspensão para acolher o corpo trêmulo. Afetados pela poética, somos convidados a grandes descansos para relaxar as margens desse texto/rio, ou mergulhar na profundidade de uma frase como essa: “É preciso muito bem esquecer para experimentar a alegria de novamente lembrar.”
Durante a leitura, uma pergunta goteja: Qual a potência de acolher a dor?
Para além do destroçamento, desvitalização e esvaziamento provocado pela dor da ausência e pela solidão, que em suas palavras; “enforcava-o”. Era necessário colocar “(a vida entre parênteses)” para que, no reconhecimento da dor e do sofrimento como inerente ao humano fosse possível vislumbrar o seu contrário.
A dor também é um prazer, a maldição também é uma bênção, a noite também é um sol – ide embora, ou aprendereis: um sábio também é um tolo. Dissestes alguma vez Sim a um só prazer? Oh, meus amigos, então dissestes também Sim a todo sofrimento. (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Quarta Parte, O canto ébrio)
Os contrários se espelham e caminham lado a lado, sendo preciso uma vontade de potência gigantesca para saber onde se esconde o antônimo da tristeza. Que ele, na perfeição de traduzir os sentimentos contou-nos: “A felicidade se escondia no porão da minha casa, e cabia a mim visitá-la.”
É nessa estrada palavreada pintada pelo vermelho do tomate, que o leitor é transportado para a experiência de viver a beleza do sofrimento. Bartolomeu é mestre em transformar dor em beleza, como se os dois sentimentos fossem constituídos do mesmo material.
Por não se furtar a dor da ausência da mãe e do desamparo de estar órfão o autor a cada linha envolve o leitor num convite ao alargamento de seu mundo interno. Tendo como causa a dor simbolizada pelo número de fatias de tomates, que denunciavam a ausência de mais um amado no aumento de sua espessura.
Um esforço de dar nome ao real escondido na fantasia, uma tentativa de desanuviar a obscuridade do mundo, que ele exaustivamente procurava o sentido. Em uma entrevista ele diz que, “foi um trabalho lento, feito em blocos, pois estava passando sua vida a limpo.”
Foi em um barco de palavras que ele levantou âncoras para viver em um “mundo que precisava de legendas.” É na palavra que sangra sobre o branco do papel que dor e sofrimento transformou-se em beleza na voz poética do inesquecível Bartolomeu.
O livro é essa personificação poética em que cada frase parece ser medida milimetricamente abarcando o sentimento vivido, para alcançar o leitor em toda sua plenitude.
Referências
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Vermelho amargo. São Paulo: Editora Global, 2017.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003. (Coleção A obra-prima de cada autor, v.)