por Giuliano Tierno
Tenho pensado no arco histórico que deslocou a imagem do coração do centro afetivo dos acontecimentos para o núcleo biomecânico das forças sociais modernas, posicionando-o numa certa utopia progressista: “menos emoção, mais razão”.
O coração que era o fundamento da ética de Maat, mãe de Rá, no Alto Egito, com sua pena da Verdade. Lembremos: ao receber os mortos, e para dar-lhes passagem, Osíris pesava o coração do morto com a pena de Maat. A passagem justa, daquele que por ali chegava, se dava quando o peso de seu coração coincidia com o peso da pena: a Verdade.
Essa é uma das imagens do Coração que foi pouco a pouco sujeitando-se ao império do cérebro. O cérebro tornou-se hegemônico, sob a égide de um tecnicismo esclarecido, analítico e que arremessou a imaginação do coração para os centros médicos.
Um coração que tornou-se assunto de especulações sanitárias, da baliza do gosto: do que se come e o do que não se deve comer para não prejudicá-lo.
O coração como moderador dos vícios e o dispositivo mais potente de controle do desejo.
O coração que tememos.
Ele pode parar a qualquer momento? Ele revela as variações de nossas pressões? Ele não deve acelerar demais?
Um coração temido.
Suas cavidades mais secretas, suas imaginações mais profundas ficaram um tanto esquecidas… lembranças rarefeitas na literatura, na arte.
A religião o elevou ao status retórico e o embalsamou nos fluidos das recompensas nefastas: vende-se a salvação enquanto impõe-se e cobra-se um amontoado de medos insólitos.
O coração mantém seu movimento: sístole, diástole, pausa. Contrai, expande e pausa.
O que há no coração que nos faz imaginá-lo tanto? A pergunta que move esse texto.
Como investigar esse “há” pode nos abrir a um outro senso de convívio? Seria possível pesarmos nossos corações sobre a pena de Maat ainda em vida?
Como?
Talvez redimensionando a soberania do cérebro sobre os órgãos em nossos gestos verbais, morais, políticos?
Por exemplo: teria o intestino alguma insurgência nesse processo imaginativo?
Montaigne, o filósofo francês, em seu ensaio sobre “A força da imaginação” nos abriu uma imagem:
“Aquele esfincter que serve para esvaziar nosso intestino tem dilatações e contrações todas suas, independentes de nossa vontade e até opostas a ela”.
Grifo meu: “Dilatações e contrações todas suas independente de nossa vontade”.
“Todas suas” (do esfincter) dissociada de “nossa vontade”. Onde reside a nossa vontade? Em nosso cérebro? E essas vontades próprias do esfíncter? Onde estão em nós? O que nos entregarmos a elas nos devolveria? Seriam essas “vontades próprias” as mesmas em alguma medida do coração?
O intestino que processa e deseja, por movimentos “todos seus”, substâncias do acontecimento vivo? O que o intestino pode oferecer de distopia a essa utopia progressista na imagem do coração? Quiçá uma distopia para imaginá-lo ainda mais. O coração como índice do comum? De Algo que é de todo mundo?
Está certo que esse binômio utopia/distopia ainda não nos garante um caminho para um comum possível, porque não nos oferta um lugar de partida (consciente ou inconsciente).
Podemos inferir então, evocando o antropólogo Tin Ingold, que talvez possamos imaginar um Topismo do Coração.
Imaginemos esse lugar do coração a partir da contribuição de algumas sentenças:
“Dividindo bem o Logos – distribuindo-o bem pelas tuas entranhas”
Empédocles
“(…) vida é esta incapacidade de um orgão desligar-se de outro”
Maria Zambrano
“(…) Viver é essencialmente viver da vida de outrem: viver na e através da vida que outros souberam construir ou inventar”
Emanuele Coccia
Síntese minha:
Distribuir o logos pelas entranhas. Órgãos ligados. Viver através da vida que outros inventaram.
Tese para não temermos o próprio coração:
Escutar as entranhas e seus sussurros mais secretos: os órgãos interligados até o coração expor suas cavidades misteriosas de revelar nosso elo com o vivo, com a inseparabilidade do vivo com os seres que o sustentam.
imagem: Suzana Buccalon