A poética da infância na construção do narrador

por Cristina Rocha

 

Lili vive no mundo do faz de conta…

Faz de conta que isto é um avião.

Zzzzzuuu…

Depois aterrizou em um piquê e virou um trem.

Tuc tuc tuc tuc…

Entrou pelo túnel, chispando.

Mas debaixo da mesa havia bandidos.

Pum! Pum! Pum!

O trem descarrilou.

E o mocinho?

Onde é que está o mocinho?

Meu Deus! Onde é que está o mocinho?!

No auge da confusão, levaram Lili para cama, à força.

E o trem ficou tristemente derrubado no chão,

Fazendo de conta que era mesmo uma lata de sardinha.

(Lili Inventa o mundo, Mário Quintana, 1994)

 

Chegue perto de uma criança pequena. Observe, escute. Ela é capaz de transpor a rigidez da realidade, deslocando os objetos de suas funções e descrições para um jogo criativo e libertador, ressignifcando a realidade que se apresenta. Perceberá que a infância é um período da vida em que conceitos, objetos e signos presentes no ambiente não são mais que desafios para descobrir, perceber, sentir e entender o mundo. A aproximação com essas características consideradas próprias da infância pode influenciar a formação do narrador? Pode afetar a sua relação com as histórias, as pessoas, a ação de narrar?

Tais foram as questões abordadas neste trabalho.

Sobre a infância

Não tratamos aqui da infância no sentido do desenvolvimento ou da aprendizagem. Tampouco sob o olhar romântico e saudosista da infância “inocente” e “pura”. Também não falamos de “resgate da infância”, uma vez que não somos pessoas divididas em partes: infância, adolescência e maturidade. Somos síntese de tudo isso e, portanto, uma rica personalidade singular. Acontece que certas formas de estar, sentir e agir no mundo vão se sobrepondo em importância a outras na medida em que crescemos, nos desenvolvemos e nos tornamos humanos em determinada sociedade.

A infância se refere a uma etapa da vida em que o olhar inédito, inaugural sobre o mundo abre espaço livre para a experiência. Um período em que o corpo e a fala formam um todo expressivo e dinâmico, tocando e esbarrando sensivelmente o mundo ao redor. Um período em que, sem um sentido imposto ou construído sobre os fenômenos e os signos, qualquer sentido é possível. Nessa busca de desvendar o mundo, sua linguagem é poética, simplesmente por ser inusitada e esvaziada de preconceitos. Os objetos não existem em função de sua utilidade prática, mas podem transcender mágica e criativamente pelo jogo qualquer outro objeto.

Sobre a infância e a poética

O fato é que a poesia, como nós a entendemos, está em toda parte, em toda arte: na música, na arquitetura, no teatro, no cinema, na literatura. Mais do que um tipo específico de texto, ela é uma qualidade. Poesia vem do grego poíesis (de poiem, ação de fazer algo, criar, fabricar, transformar), pelo latim poese + -ia. (OLIVEIRA, 2008: 28)

Jorge, cinco anos, encontra um grafite no chão e vai mostrar à professora. Ela pergunta o que é aquilo, e Jorge responde:

– É a letra do lápis! (ROCHA, 2013)

Vamos buscar a definição de grafite: A grafite corresponde a uma das quatro formas alotrópicas do carbono, […] pode ser usado em lápis ou lapiseiras (Wikipédia). Ou, como diz Jorge: “A letra do lápis”.

“A letra do lápis” é de fato uma definição poética. É uma postura ativa, criativa, a partir de sua observação do uso do material. Entretanto, ele poderia dizer: “É para escrever”, “É a ponta do lápis”.

A poesia não está apenas nas palavras, mas também em inúmeras situações típicas da infância. Por isso, tratamos aqui da “poética da infância”. A poética da infância nos surpreende, ressignifica as palavras, os objetos ganham vida e outros sentidos, a vida é um vasto campo de descobertas.

Estas palavras são banhadas pela poética da infância. Suas vozes, ao mesmo tempo que ilustram algumas características da infância, são sempre impregnadas de poesia.

A poética da infância nos inspira, faz emergir o gosto pela poesia, fortalece a liberdade de criar. A sua aproximação pode contagiar o narrador. Ele pode se tornar um “narrador poético”.

Embora a criança não tenha intenção alguma de provocar uma experiência estética no adulto, a aproximação com esse modo de estar no mundo nos desloca e desfoca da rigidez de padrões com que olhamos e lidamos com a realidade. Entrar nesse jogo, nessa experiência de brincar com a realidade é um estado de graça que o narrador pode atingir ao mergulhar de cabeça nas histórias que compartilha.

Como décadas de convivência com as crianças me formaram uma narradora brincante

 

Aconteceu comigo

Conto histórias para crianças internadas. Yuri, 11 anos. Criança com um desses transtornos psiquiátricos graves. Escolheu o livro Bruxa, bruxa venha à minha festa. É um livro em que as ilustrações são grandes e instigantes. Bruxa, dragão, tubarão, pirata… Todos com um jeito deliciosamente assustador, provocativo. Então comecei: “Bruxa, bruxa, por favor, venha à minha festa”. Yuri gritou: “Bruxa assassina!”. Sua mãe, que estava ao lado, arregalou os olhos e já vinha uma palavra, uma censura talvez. Então refiz rapidamente a frase: “Bruxa assassina, bruxa assassina, por favor, venha à minha festa”. Yuri riu a valer. E a partir daí, ia desfilando “qualidades” para as personagens: dragão maldito, pirata sinistro, tubarão da peste… Yuri fez a sua festa. (Cristina H. Rocha, relato de atuação no Hospital Grajau, pela Associação Viva e Deixe Viver, em 24/06/2016)

Nada de rotina. Com as crianças, cada dia é uma aventura. Nem sempre alegre, nem sempre ensolarada. Inaugurar-se em um mundo nem sempre amistoso e acolhedor é mesmo um grande desafio. Mas, esses olhos abertos para reinventar a realidade, essa mente curiosa e brincante sempre ressurge uma e outra vez.

Como narradora abro as portas para emergir a infância poética e curiosa. Espio frestas, cheiro livros, converso com objetos, animais e plantas, invento palavras, nunca me canso das histórias. É assim – entre o sério e o lúdico, o sensível e o concreto, a invenção, a imaginação, a trapaça da língua e correto formal – que me vejo imersa na experiência de compartilhar histórias. A poética da infância é, assim, a melhor parte que me constitui como narradora.

 

Trechos do Trabalho de Conclusão de Curso de Cristina Helena de Souza Rocha, intitulado A poética da infância na construção do narrador, sob a orientação de Ângela Castelo Branco, para a obtenção do certificado de especialista na Arte de Contar Histórias pel’A Casa Tombada- Lugar de Arte, Cultura, Educação.