O que é uma escola?

Palavras de Maria Gabriela Llansol

Carta-declaração escrita por Maria Gabriela Llansol (escritora em língua portuguesa) que trata dos princípios fundamentais da “Escola da Rua de Namur”, escola comunitária para crianças, localizada em Lovaina, na Bégica, fundada por ela e por seu marido, Augusto Joaquim. Essa experiência de escola comunitária perdurou de 1969 a 1974 e, durante esse tempo, Llansol escreveu muitos textos fortes de encontro/desencontro com o outro.

No dia 12 de manhã aconteceu um incidente, não mais grave do que outros, mas que foi a gota de água que fez entornar a minha taça.

Dou-me conta de que estamos mergulhados num doloroso equívoco. Pusemo-nos a falar de projeto societário, de comunidade, quando mesmo as mais elementares relações humanas de frontalidade/fraternidade, de cooperação, de confiança, de escuta, não tinham ainda sido construídas. Relações humanas que sejam humanas e que incluam também a amabilidade. Ou seja, sem que se viva numa atmosfera de “eu pago, eu exijo, eu suspeito”.

Que é, afinal, um ambiente de total desconhecimento do outro ou que vê o outro como objeto. E aí eu coloco uma questão fundamental, pelo menos pra mim: como poderei eu deixar que meu filho seja educado por um objeto?

Em primeiro lugar, um mínimo de qualidade nas relações humanas: saber ver no outro um interlocutor, e não uma máquina que tem de realizar os meus desejos (desejos que se perdem, sem consistência, na confusão ou no caos da massa).

Muitas das nossas relações quotidianas, insisto nesse ponto, são medíocres, nao deixam qualquer marca positiva, deixam antes feridas no conjunto constituído por vós, por nós e pelas crianças. Fazem-se processos de intenções, critica-se pelas costas, gera-se uma insensibilidade à extrema gravidade da calúnia. E esquece-se que o bom nome de qualquer um é efetivamente a sua propriedade básica e essencial.

Para mim, é intolerável ter, seja com quem for, relações de merceeiro. Cai-se numa linguagem sem amplitude e sem horizonte, e, por esse caminho, chegamos a banalizar os nossos melhores desejos.

Se não somos de fazer mais do que apresentar este triste espetáculo, será melhor que cada um fique em sua casa. Tenho pensado todo este tempo em como seria necessário regressar a velhos hábitos: a vontade de apresentar aos outros o que temos de melhor.

Num dado momento, a minha intenção era guardar tudo isto para mim, e ir-me embora. Mas, como gostaria de ficar, não posso deixar de dizer que falta qualidade às nossas relações cotidianas.

Porque gosto de ser clara, acrescentarei que há certas relações (as conversas individuais, por exemplo) que me parecem corretas e muito positivas, de tal modo que me pergunto por que razão as outras não têm essa mesma natureza.

Eis o ponto a que cheguei nas minhas reflexões e nos meus sentimentos. Por minha vontade, não participo em projetos societários se não existir um mínimo de amabilidade (troca, respeito do outro e do seu trabalho).Por isso, deixem de acreditar que tudo o que vivemos aqui ode ser avaliado em termos e em linguagem monetários: o amor só se paga com amor.

Esta carta não se dirige a ninguém, mas, se é que assumes pode dizer, a um certo tipo de comportamento contrário às minhas opções fundamentais.

Gabi

Lovaina, 16 de novembro de 1973.

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