Sementes na pele de papel

 

 

por Angela Pappiani

 

 

 

Durante muitos anos eu escutei histórias tradicionais, no aconchego de minha casa, balançando na rede; dentro das casas de palha cheirosa nas aldeias, com o foguinho estalando ou deitada nas esteiras no pátio aberto para o céu de mil estrelas. Histórias do tempo do poder que falam da criação do mundo, das paisagens, dos seres vivos de todo tipo, dos afetos, dos rituais. E também narrativas de um tempo antigo vivido pelos ancestrais das pessoas que hoje se incumbem de transmitir o conhecimento, que mantêm vivas a história, as lutas, os percursos dos povos por seus territórios, físicos e imateriais.

Essas narrativas sempre me tocam profundamente, me fazem pensar, sentir, questionar, imaginar outros mundos possíveis, sonhar. Essas histórias reverberavam no ar, na voz de pessoas maravilhosas de tantas origens e lugares, em tantos idiomas diferentes, e me penetravam, passavam a integrar meu corpo e meu espírito como matéria, células, fluidos, ondas de energia. Não me atrevia a registrar, capturar ou transpor para a escrita pois não me havia sido dada a autorização, não me haviam solicitado ou argumentado sobre a importância desse ato. Até que os anciãos do povo Xavante, com sua sabedoria e estratégia, reconheceram a importância de documentar em papel suas histórias e dá-las a conhecer aos povos estrangeiros, os warazu.

Wabuá, um dos amigos A’uwê Uptabi – autodenominação do povo Xavante que significa Povo Verdadeiro – disse, em 1985, em uma de nossas conversas: “Ninguém respeita aquilo que não conhece, precisamos mostrar aos warazu a força e a beleza de nossa cultura para que assim passem a nos reconhecer, admirar e respeitar”.

Com esse entendimento, o povo A’uwê Uptabi começava uma caminhada para que sua cultura e tradição chegassem às pessoas numa busca de aproximação, de aliados capazes de respeitar os povos tradicionais e se juntarem à sua luta por direitos, por um lugar merecido e digno neste Brasil que se formou como país sobre terras ancestrais.

Decidiram começar pela música, linguagem universal, capaz de chegar ao coração sem necessidade de tradução. E gravamos o CD “Etenhiritipá – cantos da tradição Xavante” que fez um belo caminho, com o reconhecimento por sua qualidade técnica e pela força da coletânea ritual, conquistando aliados importantes como a banda Sepultura e seus fãs por muitos cantos do planeta. Depois veio o documentário A’uwê Uptabi – O Povo Verdadeiro, com imagens históricas do contato, de rituais importantes e do cotidiano da aldeia captadas ao longo de quatro anos, além de depoimentos impactantes dos velhos. Documentário que contou com a narração do amigo e aliado Milton Nascimento e conquistou prêmios importantes. 

E, então, o próximo passo, foi materializar o pensamento e as narrativas da tradição oral nas palavras impressas de um livro, objeto valorizado no mundo dos warazu que poderia ser lido pelos estrangeiros, seguindo a estratégia de aproximação, e também pelas crianças Xavante nas escolas onde já aprendem o português. O livro “Wamrèmê Za’ra, nossa palavra – mito e história do povo Xavante”, editado em 1998 pela Editora SenacSP, é pioneiro, trazendo a palavra dos cinco homens mais velhos da aldeia Pimentel Barbosa com algumas narrativas do tempo do poder, lindamente ilustradas pelos jovens da aldeia, e uma série de relatos sobre o tempo dos primeiros contatos com os warazu, no final da década de 1940.

Nos sentávamos no Warã, o círculo no centro da aldeia, o lugar das cerimônias, dos encontros, das falas, das negociações, para esses momentos especiais, com as crianças e os adultos em volta, em verdadeiros rituais. Sereburã, Serezabidi, Rupawe, Hipru e Sereñimirãmi eram jovens quando os warazu chegaram a seu território onde antes eles andavam livres, sem encontrar rastros de pneus sobre a areia, sem cercas de arame farpado limitando o horizonte, sem cheiro de combustível, sem o barulho assustador do avião, dos tiros das armas de fogo, das bombas que ameaçavam acabar com todo o povo. Foram testemunhas de um tempo de convívio pleno e livre dentro da natureza, sem depender de nada além do seu conhecimento sobre o território, sua força física, a conexão com o mundo espiritual e as estratégias para manter uma vida boa, saudável e feliz.

E as histórias que eles contaram, em muitas conversas em roda, nos ciclos do verão e do inverno no cerrado, trazem para o presente, para este momento do agora, quando as lemos, capturadas nos desenhos sobre o papel, os lugares que existiram e já não existem como antes. As histórias revivem lugares sagrados, de acontecimentos importantes para o povo, que foram transformados em pasto, ou inundados por barragens, viraram plantação de soja, mar de folhas idênticas, sem ponto de referência. Essas histórias recriam esses lugares no imaginário das novas gerações, recompõem os mapas do território, a paisagem restaurada pelas palavras de poder. E as histórias trazem personagens fundadores, heróis que ensinaram a cultivar, a encontrar o alimento no cerrado, que trouxeram batatas e inhames do céu, que aprenderam sobre a cura com os urubus, que roubaram o fogo da onça. Trazem as brasas esvoaçando do tronco de jatobá em chamas, se transformando em pinturas sobre a plumagem dos pássaros, criando cores. Trazem linguagens de seres transformando-se em bicho e gente, incorporando gestos e pensamentos, traçando caminhos e histórias. Trazem mistérios nunca revelados, ensinamentos de poder, cânticos de cura e de conexão com os espíritos e os seres invisíveis. E contam sobre o medo, as estratégias para o contato pacífico com aqueles seres violentos que chegavam, as transformações na vida depois do encontro com os warazu, a luta pelos direitos à terra.   

E na voz desses anciãos, nas palavras de poder emitidas num idioma milenar com sua sonoridade e força, essa magia acontecia enquanto éramos testemunhas dos relatos. E a magia acontece hoje, mesmo que eles já tenham partido deste plano, nas palavras que se recompõem em nossas mentes pela leitura, ou nas palavras recriadas com o hálito divino que nos dá vida e semeia sonhos.

Fecho os olhos e vejo os rostos marcados pelo tempo desses homens que atravessaram um fim de mundo e ajudaram a recriar outro mundo possível na convivência difícil com os warazu. Vejo seus olhos brilhantes e cheios de vida, os gestos e a dança dos corpos que desafiavam a idade. Eles se transformavam quando atravessavam os limites do tempo, as fronteiras da aldeia e se lançavam nas aventuras de suas juventudes e nos relatos do tempo dos ancestrais.

Suas histórias ficaram para sempre registradas num livro e poderão renascer a cada vez que alguém pousar os olhos sobre os desenhos na pele do papel. São sementes poderosas, prestes a brotar e se desdobrar no ar. A nós, que ficamos por aqui mais um pouquinho, resta a tarefa de seguir semeando e nutrindo essas sementes.

Compartilho aqui uma das belas histórias narradas nesse livro.

Rómraréhã Rówasu’u  – História do tempo da escuridão

Eu vou contar, eu vou contar…

Antigamente o povo A’uwê vivia na escuridão.

Antes da lua. Antes do sol.

Os wapté estavam assando ovos de . Comendo. Wapté têm respeito, dizem a verdade entre si.

– Como vocês quebraram os ovos de ema?

– Nós quebramos batendo com os ovos no peito.

– Eu não acredito.

– É verdade! É verdade.

Eles não falaram a verdade. Não falaram.

Ovos de assados são muito quentes. É muito quente! Por isso eles inventaram…

Mesmo não acreditando, o wapté bate com o ovo no peito. Então quebra.

Ele grita de dor.

– Asururu… Asururu…

Corre para o rio. De mão fechada. Grita de dor. Está gemendo.

Ele se joga na água para esfriar o peito. E fica rolando, rolando na água escura. Até no fundo da água.

Ele melhora, fica em pé.

E se transforma em lua.

A lua é branca. Brilha. Brilha como ovo de ema.

É assim que surgiu a lua.

Ãné!