por Caio Zero
Criado e revisitado durante um período de 7 anos, Rumi se transforma em uma publicação editada pela Incompleta em 2021. Esse lapso em que a história ocupou a gaveta, foi antes de tudo um contrato que faço com coisas que escrevo, na qual só posso desenhar a história quando me for dada a habilidade necessária para extrair todo o sentimento colocado na escrita. É uma forma de respeitar o que escrevo e compreender seu potencial.
O tempo para a edição e produção do Rumi foi essencial, inicialmente porque, quando escrevia a história na sua primeira fase, me cercava das experiências que vivi aos 17 anos de idade. Em segundo lugar, essa substancialidade veio com o decorrer do tempo, pois obtive outras experiências que reforçaram que essa história não era uma colagem feita pelas minhas memórias de infância e adolescência, mas sim uma infeliz e triste realidade que talvez não tenha mudado durante todo esse tempo em que a história se acomodava na gaveta e, caso tenha mudado, foi pra pior.
Rumi conta a história de uma criança em situação de rua que, acompanhada do seu gatinho Nico, revira lixo e faz malabarismo no sinal na tentativa de se alimentar. Vez ou outra é ajudada por uma mão caridosa, a Tia, que é uma senhora que sempre que pode doa algo ao menino, um pouco de comida, uma peça de roupa, uma conversa.
No decorrer da história, o menino encontra Malu, uma menina que passa também a estar em situação de rua, devido às violências sofridas. Ambos encontram acolhimento um no outro e, apesar de toda a situação caótica e violenta que vivem nas ruas, estabelecem um vínculo, o que os próprios personagens chamam de Família.
Escrever sobre Rumi é acessar todas as memórias que foram disparos para a construção da história e o cuidado que tive em torno dela, tanto em seu desenho, quanto em sua escrita. Inicialmente, destaco que uma das minhas maiores preocupações era não deixar de maneira alguma que a história soe como uma “romantização da solidão, do abandono social, da negligência estatal e da brutalidade das experiências” como Lorrane Benedicto aponta de forma engenhosa no Posfácio da obra. Sobretudo, trato na obra, acerca desses corpos violentados e estigmatizados, o poder do afeto, afeto como cuidado e como resistência em um ambiente hostil e real.
As experiências que vivi e apontaram o esboço do livro são muitas, afinal, observar e sentir são um universo. Longe de tentar resumir tudo em poucas palavras, aparar toda essa dimensão requer atenção e uma sensibilidade poética a qual não desfruto no momento. Por isso, o gesto de ilustrar algumas dessas memórias apontaram não apenas uma vida de um jovem garoto, negro e periférico, mas também de quem observa e sente as tensões que o atravessam.
Na infância, ouvir sobre a chacina da Candelária me mobilizou. Estavam ali diversos corpos de adolescentes e crianças que tinham a mesma cor que eu e diferente de mim não tinham uma casa. Ainda pela infância, vi alguns meninos correndo para o chafariz que havia no centro de Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro em um dia de calor, queria correr pra lá também, mas fui impedido pela minha mãe que explicou que eles usam o chafariz pra tomar banho, que eles não teriam uma casa, nem um banheiro, como nós. O medo no olhar de quem passa na rua perto de pessoas em situação de rua, o estigma, a precariedade. Aos poucos ia compreendendo, mesmo com muitas questões na infância, o que são pessoas em situação de rua.
Outra experiência não menos importante foi a de conhecer o poeta persa do séc. XIII Maulana Jalaladim Maomé, também conhecido por Rumi. Em um livro sobre filosofia, esbarrei com uma citação à qual atribuíam uma frase a ele: “Não lamente, o que se perde retorna em outra forma”. Ao primeiro passo, fiquei pensando dias sobre isso e foi só ao perder Tigre, um gato de estimação que pude talvez compreender o que o poeta quis dizer. Perceber as existências de outras formas é aceitar as partidas e compreender que a memória é viva e é a partir dela que também se faz existências.
Conto a respeito dessas memórias, pois contar acerca disso é contar de Rumi, não apenas por serem partes da construção da obra, mas por serem símbolos de um abismo social que encontramos ao vagar pelas ruas diariamente e perceber na memória um elemento de força.
Toda essa variação de momentos no decorrer da história, tratando tanto elementos mais concretos e angustiantes, quanto mais leves e afetivos são transmitidos a partir da cor. Essa foi sem dúvidas, uma ferramenta que pôde ampliar a narrativa e todas as nuances e atmosferas que a história trazia em seu enredo.
Talvez se você folhear a história sem necessariamente ler os balões, você sinta essa mudança e no desenho não é diferente. Durante o projeto senti uma imensa necessidade de mudar o acabamento gráfico do desenho, isso porque próximo do final da história passamos a ler um livro ilustrado dentro da história que estamos acompanhando, junto com Malu. Nesse tempo, vemos as páginas de quadrinhos se transformarem em colagens, acompanhando a história de um pequeno pássaro que também carrega o nome de Rumi.
Essa distinção entre a história que estamos acompanhando e a do livro ilustrado, me deu a possibilidade de trabalhar com outro acabamento nos desenhos, o que foi uma experiência incrível.
Confesso que produzir Rumi foi uma escola no sentido de desenhar, escrever e colorir uma grande narrativa. Nesse enredo a ajuda, liberdade, cuidado e confiança que a Laura Del Rey, editora da publicação, depositou nesta publicação, foi elementar para conduzir o trabalho gráfico e potencializar a história.
Todo o percurso temporal que Rumi fez, desde sua fase embrionária, há 7 anos, até agora, se transformando em um livro, acaba por evidenciar que embora tenha decorrido um longo período, ainda estão presentes pendências sociais a serem resolvidas e que precisam urgentemente da nossa atenção. O quadrinho é um convite a refletir sobre nossos comportamentos, espaços de privilégios e a afetividade como agente transformador.
Caio Zero é Artista-educador e Quadrinista, graduado em Licenciatura em Artes na UFRRJ. Já publicou de forma independente os títulos “Antologia I e II”, “25PÁGINAS” e “Rumi” pela Editora Incompleta. Atualmente pública quadrinhos com o selo Subúrbio Zero e é integrante da revista gratuita XTPO publicada no Instagram. Participou de eventos como XIX Bienal do Livro Rio, LER Salão Carioca, FLIB entre outros. Também participou do curta-metragem animado “Nana e Nilo – Cidade Verde”. Para quem se interessar pelo Rumi, pode ir direto no site da Editora Incompleta ou entrar em contato no Instagram.
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Portfólio on-line: https://www.behance.net/caiozero/projects