"Tive que fazer da morte uma ruína", por Ângela Castelo Branco

por Ângela Castelo Branco

 

Do fragmento de Maria Filomena Molder:

A primeira casa será sempre uma casa desmoronada

testando para sempre os limites das nossas convicções

 

Com o fragmento de Epitecto:

Que estejam diante dos teus olhos, a cada dia, a morte, o exílio e todas as coisas que se afiguram terríveis, sobretudo a morte. Assim, jamais ponderarás coisas abjetas, nem aspirarás à coisa alguma excessivamente.

 

E mais o fragmento de Ana Martins Marques:

Minha casa sao meus retratos

minha casa é meu martelo

minha casa é meu manuscrito

minha casa é meu colar

de contas verdes de vidro

tiraram-me tudo

e no entanto me sobra muito

minha casa é teu cabelo cinza

meu casaco de feltro

meu amor esfacelando-se

minha casa é meu cansaço, minha miopia

minha artrite, a criança que fui e sigo

sendo, minha casa é a memória da casa

demolida, o cão que não tive

a parte que não entendo

no poema que traduzi (…)

 

 

Tive que inventar uma ruína-casa e fazer da morte uma ruína, ou seja, potência de re-construção:

 

mãe, quem vai tirar suas roupas do armário quando não estiveres mais lá?

e os papeis do pai, como ele conseguiu guardar tanto ticket?

e os potes de tempero engordurados já vencidos?

já não me lembrava desse bolor no teto do banheiro,

nem que a gaveta não fechava como antes

– por que não me pediu pra consertar a fechadura do quarto?

só as plantas souberam atravessar séculos

lembra, mãe, quando descobri os pequenos ramos dessa renda portuguesa?

você me disse: – tão duráveis como os ossos

no entanto, eram os seus que estavam se desgastando

empoeirando minha capacidade de dizer sim ao que viesse:

colorau, tempero de peixe, pó amarelo que confundo o nome, canela, orégano, pimenta preta e pimenta branca

te guardarei para sempre, em tudo o que é soprável:

esse nosso futuro de vento