O Quarto de Giovanni, James Baldwin, por Francisco Nunes

por Francisco Nunes

 

 

David, serei breve…

 

Quero começar por dizer que entendo a sua confusão mental, seus problemas de entendimento sobre a sua sexualidade e até poderia lhe dizer sobre as origens de cada um deles. Contudo, para poupar o nosso tempo, breve serei.

Talvez o quarto, pequeno, exíguo, fétido, apertado e que lhe incomodou tanto, não seja o espaço físico propriamente dito, mas como você se entende a si e projeta nos lugares todos onde registrou a sua passagem e isso inclui Paris, cidade que a todo custo, em dado momento, você quis abandonar, sair, deixar, fugir. Mas, não se pode fugir de si, não é verdade, David? Às vezes os norte-americanos têm verdades incompreensíveis e as impõe como a si por onde passam. Aliás, parece que fuga é uma palavra que lhe acompanha desde sempre, de São Francisco ao Brooklyn, de Seattle a Nova York e daí para Paris onde dor e delícias passaram a se confundir na sua vida, na de Giovanni, na de Hella, e na minha ainda que tardiamente, e eu sofri laceradamente.

Se você ainda estiver vivo, suponho que esteja com quase noventa anos. Irei lhe poupar de alcunha-lo de “bicha velha” como em tantas e desnecessárias vezes você se referiu a Jacques, a Guillaume e a tantos de nós, e isso inclui você, ou você pensa que adormeceria naqueles vinte e sete anos? Aliás, parece que os norte-americanos continuam tendo problemas com idade e fingem uma eterna adolescência irrefreada e inconsequente de verão. “Bicha velha” David, talvez fosse o seu medo, a projeção distorcida, a imagem que você não queria mirar no horizonte de suas retinas, nos seus espelhos. Mas, você fugiu, como sempre o fez. Talvez não houvesse mais tempo, acaso vivo você estivesse. Ainda assim, impiedosamente, eu não lhe teria como uma “bicha velha”, muito menos como passiva, assunto sobre o qual você jamais teve a coragem de ir adiante, de dar a ler. 

Não tenho raiva de você, David. Confesso não tê-la. Mas não posso dizer o quanto me dilacerou, machucou e cortou na alma a maneira como covardemente você entregou Giovanni aos leões de suas existências naquela Paris dos anos 1950. E eu sofri. E sofri duplamente. Sofri por você não ter tido a coragem necessária de se assumir – hoje se fala que fulano, sicrana são assumides em referência à potência de dizer-se quem é, inclusive, como uma afirmação política e identitária, sabia? – e você “simplesmente” preferiu renunciar a si, fugindo de si e mutilando uma história de vida que continua não sendo apenas sua. Pasme, David: tem se intensificado o número de caras casados (e solteiros) que paralelamente tem dado vazão às experiências diversas com outros. Muitos, corajosamente, uns até terminam seus relacionamentos, ou a farsa que eles representam, embora eu ainda veja muitos caras se escondendo purpurinadamente, exatamente como você tentou proceder com Hella. Em verdade, tenho a impressão de que ao penetrá-la, era você o penetrado e você se projetava ali naquele momento, embora fugisse. 

E sofri por Giovanni no quarto pequeno e apertado que era a vida dele, como a sua. Como você bem disse, “talvez a casa da gente não seja um lugar, e sim simplesmente uma condição irrevogável”, condição que, lembrando bem, você não teve a coragem suficiente de peitar, inclusive para si próprio, e eu sofri, como sofreram Hella e Giovanni, este, encarcerado pelo crime bárbaro cometido contra Guillaume. Claro que não estou inocentando Giovanni em sua ação brutal, jamais o faria. Mas, talvez Giovanni tenha assassinado David em Guillaume ou a si próprio tão somente como uma maneira de livrar-se de si e a “bicha-velha” que tanto lhe incomodava. 

Não sei se egoísta pode ser uma palavra para defini-lo. Não sei. Mas o que sei é que em nenhum momento você pensou em Hella, não pensou em Giovanni, talvez não tenha pensado em si próprio. Contudo, o estrago foi violento e não apenas para você, mas, principalmente, para Hella e Giovanni, ela encarcerada na prisão da traição e da culpa de gênero com a qual você a vestiu; ele, encarcerado na prisão por um crime cometido em seu nome. Sim, em seu nome. Ele não teria chegado a tanto acaso você não tivesse sido tão desumanamente covarde: você o jogou aos leões de suas próprias sortes, David. Você o abandonou na chuva e na tempestade quando ele não tinha agasalhos e nem guarda-chuva para se proteger. Mas ele te protegeu no momento em que você esteve mais frágil, mais fraco e indefeso, lembra? Não foram apenas saídas furtivas, gozosas e inebriantes naquelas manhãs que se trescalavam em Paris após o expediente de trabalho de Giovanni. Não, não foram. Ao modo dele David, Giovanni lhe protegeu, lhe acolheu e lhe deu morada, no quarto (este físico) que tanto lhe incomodava. 

Lembra das suas constantes tentativas de limpeza e arejamento do quarto (este físico), era você tentando limpar o quarto sujo, fétido, apertado, confuso e pequeno que era a sua existência. Sim, pequena. Lamentavelmente, pequena. E eu sofri por isso, talvez ainda sofra porque de alguma forma, por vezes, vejo, hora ou outra, histórias como as de vocês insistindo em permanecer no ar. Nem tudo que é sólido desmancha no ar. O velho Marx me comeria o fígado ao ler isso. 

As vezes tenho conversas infindas com Daniel e Diego sobre essas nossas histórias cruzadas e sobre como ainda, de alguma forma, nos atormenta, os nossos sofrimentos, tão diversos quanto cotidianos neste mundo gay, sobretudo para aqueles aos quais em suas/nossas escolhas traçam caminhos de solidão, solitude. Sim, David, Baldwin também falou de solidão quando lhe deu vida, aliás, quando lhe emprestou a própria vida na condição de homem negro, afinal, se continua sendo difícil ser homem negro neste vintênio de abertura do século XXI, imagine como não deve ter sido naqueles anos ardentes na Belle Époque tardia de Paris dos anos 1950. 

Bom, fiquemos por aqui. Deixe-me ir à maneira de Cartola, David. Ou como nos disse Baldwin através de Whitman, “eu sou o homem, eu sofri, eu estava lá”.

 

 

Sobre o livro/atravessamentos: O quarto de Giovanni de James Baldwin foi publicado em 1956. O livro trata de uma relação conturbada, a que hoje denominaríamos “triângulo amoroso”, envolvendo David, personagem central do enredo, Giovanni e Hella, com os quais a personagem central viveu as dores e as delícias de sua confusa condição de heterossexualidade na conjuntura histórica dos anos 1950 em Paris, contexto pós Segunda Guerra Mundial (1939-1945) fortemente marcado por movimentos liberais e políticos diversos que começaram a pautar as diversas expressões de identidades socioculturais como aquelas relacionadas a gênero, raça e classe. O seu autor, James Baldwin, homem negro e gay, romancista, ensaísta e teatrólogo, nasceu em Nova York em 1924 e morreu em Saint-Paul-de-Vince em 1987, nos deixando uma obra e um legado incomparáveis em sua estética e proposições. O quarto de Giovanni me toca profundamente a alma, a pele e a existência. Eu estive lá. Estou.

 

 

Francisco Antonio Nunes Neto, historiador com doutorado em Cultura e Sociedade (UFBA-IHAC) e pós-doutorado em Educação (UFBA-FACED). Professor na UFSB e do mestrado de Ensino e Relações Étnico-Raciais (PPGER-UFSB). Membro dos grupos de pesquisa: O Som do Lugar e o Mundo (UFABA-FFCH); do Grupo de Pesquisa Griô: Culturas Populares, Ancestralidade Africana e Educação (UFBA-FACED); do coletivo Culturas e Festas (UFBA-CULT) e do NEAB-UFSB. contato: [email protected]