por Camila Feltre
Foi numa quinta do mês de setembro, com um tempo livre em uma das idas e vindas da minha moradia provisória para a minha casa em São Paulo, que resolvi passar na Simples, uma livraria de bairro que eu adoro. Entrei e já pensei: Nossa como faz falta essas idas a livrarias, entrar neste espaço, ver o que está circulando, as seleções que estão fazendo, os destaques, topar com um livro ou outro que eu não esperava. E foi assim que aconteceu minha história com o Cartas para minha avó, de Djamila Ribeiro (Companhia das Letras, 2020) que eu vou contar para vocês.
Entrei e logo na primeira sala vi o livro: capa vibrante em azul e vermelho e no título a palavra “Cartas”, que eu adoro.
Continuei o percurso até a última sala ao fundo, de livros para a infância, onde eu estava mesmo decidida a ficar. Na volta para a saída, passei novamente onde estava o Cartas para minha avó e ele olhou de novo para mim. Peguei na mão. Vontade de ver, espiar. Pergunto para o Beirigo, livreiro atencioso que sempre oferece um café quando eu chego: Posso abrir? Estava com o plástico. Claro, ele respondeu na hora.
E no primeiro parágrafo, encontro:
Querida vó Antônia,
Minhas lembranças de você têm gosto de manga verde e doce de abóbora. Têm cheiro de feijão e jantar às seis da tarde. Você me adoçava a boca e benzia a alma. “É cobreiro, tem que benzer.” Ou: “Essa menina está aguada, dê o que ela quer comer”. Eu amava passar minhas férias na sua casa, sentir o amor em sua melhor forma.
Fui direto para o caixa. Ele me pergunta: Bateu? E eu: Super!
Fui embora com aquela preciosidade nas mãos, confidências de uma neta para a sua avó. Enquanto lia, vinham lembranças de minha infância, não de manga verde, mas de pé de mexerica. Não do feijão às seis, mas dos cafés da tarde. Fui lendo e pensando muito na minha relação com minha avó, com minha mãe, nesses laços que existem entre as mulheres da família, que Djamila traz tão lindamente com força e mistério. Ri, chorei, me emocionei enquanto lia. Tão profundo, tão sincero, fraturas expostas, cicatrizes que abrem frestas para olhar o mundo.
Djamila, feminista negra, escritora, acadêmica, que em 2016 foi nomeada secretária-adjunta de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo e autora do Pequeno manual antirracista. No livro, escreve para a avó Antônia num ato de cura, em amarrar as pontas de um passado de dor e também de alegria, como ela diz: Como essa dor será carregada para sempre, ela não pode nos fazer afundar e esquecer as memórias felizes.
Você humanizou toda uma linhagem e é meu dever também humanizá-la e, ao contar a você um pouco do eu aprendi, eu me humanizo também. Não apenas eu não tive tempo de conhecê-la, mas você também não pôde me conhecer. Apesar de você sempre saber quem eu era, com essas cartas quero lhe apresentar quem me tornei.
Uma escrita-escrevivência, referenciando Conceição Evaristo, unindo os fios de quatro gerações de mulheres: Antonia, Erani, Djamila e Thulane.
Em um dado momento, a mais velha encontrará a mais nova. A mais nova precisa da mais velha porque a última pavimentou os caminhos que permitiram a existência da mais nova. E a mais velha também precisa da mais nova para continuar existindo. Não há mais fragmentos soltos, há continuidade e permanência.
Não há mais fragmentos soltos, há continuidade e permanência.
Obrigada, Djamila.
Obrigada Cris Rogerio, Lolla Angelucci e Ananda Luz, parceiras que estiveram perto neste meu encontro com o livro e nesta escrita.
Obrigada professora Luiza Christov, que nos ensina que todes os corpos vivem experiências de linguagem e são capazes de narrar sua experiência.
Camila Feltre é professora e co-coordenadora da pós O livro para a infância n’A Casa Tombada. É doutoranda em Arte Educação no Instituto de Artes da Unesp/SP.