por Angela Pappiani
Seu Casemiro Sampaio, um sábio e poderoso ser da floresta, conhecedor das histórias do princípio do mundo, dos milhares de cantos e melodias de flautas de seu povo Yepah Masã, conhecido como Tukano, nos deixou órfãos. Se foi no começo deste ano, vencido pela Covid19 como tantos outros indígenas, de tantos povos, neste Brasil que não conhece, não respeita seus habitantes originários.
Ele era pai de um amigo querido e o conheci primeiro pelas histórias de seu filho. Tempos depois, tive o privilégio de visitá-lo algumas vezes em sua aldeia, às margens do rio Balaio, no extremo norte do país, quase divisa com Venezuela e Colômbia. O recebi em São Paulo e também viajamos juntos, com sua esposa Dona Guilhermina e outros 12 casais do povo Tukano para uma aventura por cinco cidades na Alemanha onde foram apresentar suas flautas, cantos e danças tão lindos e contagiantes. Difícil ficar parado ao som do Kariço, as flautas de pan animadas que conduzem as danças.
Seu Casemiro gostava muito de contar histórias. Coisas vividas em seus muitos anos de travessia por este planeta, coisas do tempo dos antigos, narrativas fantásticas sobre o começo dos tempos. E gostava também de ensinar, transmitir seu conhecimento sobre as coisas e os seres: a floresta, a roça, a vida, os sentimentos. Ele falava bem o português, ensinado na marra pelos missionários Salesianos, mas tinha protegido no fundo da memória sua língua nativa proibida pelos padres, os cantos, as melodias de flauta, as narrativas. E o que não tinha conseguido proteger da sanha colonialista cristã, ele recuperava nos sonhos, ou ia atrás de aprender, dias de canoa subindo os rios que não reconhecem fronteiras até chegar nas malocas dos parentes que escaparam da violência nas florestas da Colômbia.
Teria muitas histórias para contar dessa convivência maravilhosa com Seu Casimiro, um grande privilégio, um presente enorme! Mas houve um momento, delicado e marcante, em que ele, como um pai zeloso, chamou minha atenção, em que reconheci o erro e abaixei a cabeça com os olhos brotando lágrimas. E esta história é justamente sobre o poder da palavra, tema do segundo Encontro com o Povo Verdadeiro.
Começando então: eu sempre admirei as onças, escutei muitas histórias onde elas aparecem, poderosas, controlando a vida, o fogo, os ossos da humanidade devorada. Já havia visto algumas onças pardas bem de perto, protegida dentro da caminhonete, no caminho que cruza a Serra do Roncador até a aldeia Xavante. Já tinha admirado, à certa distância, uma onça pintada enorme, magnífica, sentada às margens do Rio das Mortes, eu dentro do barco, ingênua, me sentindo segura, sem saber que ela poderia nadar rapidamente e nos alcançar em segundos, se assim quisesse.
Mas nunca tinha visto uma onça preta, um jaguaretê, solto na natureza, em pleno domínio de seu território. As histórias do querido amigo Marcinho Ferreira que passou dias de convivência com um jaguaretê no zoológico de Belo Horizonte para fotografá-lo para a capa do álbum de Milton Nascimento ainda reverberavam em minha cabeça. Eu tinha um desejo enorme de ver esse ser fantástico de perto.
Numa das viagens à aldeia de Seu Casemiro, cheguei a comentar esse meu desejo com o amigo e companheiro de viagem Evandro Lopes, responsável pelas gravações de som de nosso trabalho. Então, num final de tarde tranquilo em que nos reuníamos na grande maloca comunal, no centro da aldeia, houve um alvoroço, um barulho assustador alterou o tempo. De repente o gado que o povo mantinha num pasto pequeno, cercado de arame farpado a certa distância, rompeu a cerca e invadiu a aldeia, passando por cima de tudo, quase derrubando casas, cruzando por dentro da maloca aberta. Uma das vacas mugia desesperada, com a grande onça negra, o jaguaretê, agarrado a seu pescoço. Alguém atirou para o alto e a onça fugiu. Foram horas para acalmar as crianças, recuperar o que estava fora do lugar, sossegar o espírito, recolher o gado, consertar a cerca. Eu estava em estado de choque, paralisada. Ao mesmo tempo maravilhada e apavorada. Quando o coração voltava ao ritmo, Seu Casemiro veio até mim, me encarou com o rosto tenso, e disse num tom de repreensão, como pai que dá bronca num filho: “você tem que tomar cuidado com sua palavra, tem que tomar cuidado com o seu desejo. Isso podia ter acabado muito mal, alguém podia ter se machucado. Você chamou a onça. Agora tem que mandar ela ir para longe de novo”.
Ele estava certo, conseguiu enxergar a origem do desequilíbrio no pensamento tolo de alguém de fora daquele círculo. Eu estava no meio da floresta, num lugar de poder e não cuidei com responsabilidade do meu pensamento e de minhas palavras. Sofri muito pensando nas consequências possíveis de meu desejo. Fiz o que Seu Casemiro pediu. Me recolhi e pedi com toda a força de meu espírito que o jaguaretê desculpasse minha ignorância, que seguisse seu caminho e encontrasse alimento longe daquele lugar, cuidando para que as pessoas ali ficassem protegidas. Aquela foi uma noite difícil, todos estavam apreensivos ainda, temendo o retorno da onça.
O dia amanheceu com a aldeia estava animada, as pessoas riam e vinham falar comigo com comentários bem humorados sobre o acontecido, com leveza e carinho, generosidade amorosa. Virei motivo de piadas, sem ressentimentos, sem cobranças, me senti criança travessa aprendendo os limites da vida. Nunca esqueci desse momento de tensão e de aprendizado. Sei que ainda cometo o mesmo erro, permitindo pensamentos e palavras ruins escaparem do controle, eu, “mulher branca burra” (isso é outra história…).
É uma tarefa árdua, cotidiana, de cada minuto, a gente superar uma educação desconectada da natureza, do espírito, das verdades mais fundamentais, das necessidades básicas da vida, do respeito a nosso corpo e busca da felicidade, de reverência aos ancestrais, ao conhecimento milenar, ao coletivo.
Seguimos, vencendo os medos e as barreiras que nos impedem de enxergar e escutar, tentando aprender com quem pode nos ensinar a manter o céu suspenso.
Compartilho um texto lindo escrito por Ailton Krenak em 1998 para abertura do livro Wamrèmê Za’ra – nossa palavra. Mito e história do Povo Xavante (Editora SenacSP) que tive a alegria de coordenar, reunindo relatos dos cinco homens mais velhos da aldeia Pimentel Barbosa:
Sugestão de leitura: Antes o mundo não existia de Umusï Pãrõkumu, ou Firmiano Arantes Lana e seu filho Tõrãmü Kēhíri, ou Luiz Gonzaga Lana, Editora Dantes, 2019.