Esse rio não é minha rua, é minha casa

 

por  Keké Bandeira

 

Sou nortista, da Amazônia, parida nas beiras do rio Tapajós, em Santarém, oeste do Pará. Depois de gente de beira de rio sou mulher negra, com deficiência, cinemista de beira com a produtora de audiovisual Formiga de Fogo, documentarista da Amazônia. De estudo, sou mestre em sociologia pela UFPA, funcionária pública na Universidade Federal do Oeste do Pará. A poesia se manifestou muito cedo, em todas minhas memórias há um texto, uma palavra. Quando criança ainda sabia decorado vários livros de poesia graças a cia de artes Onphalos, grupo de teatro que entrei quando criança e que mudara pra sempre minha vida. Drummond era sempre o preferido, meu pai que desde sempre foi meu grande incentivador pedia pra eu recitar. Aos 20 anos escrevi meu primeiro livro, nunca publicado, chamado “água, sal e açúcar”. Sempre que ia a uma livraria papai me puxava pelo braço com cara de sapeca e dizia: “olha só, teu livro vai tá aqui um dia!” Chamava um funcionário e perguntava tem o “água, sal e açúcar?” de Keiliane Bandeira, o funcionário sempre procurava tudinho e obviamente não achava. Papai dizia, poxa vocês têm que providenciar, muito bom esse livro. Eu sempre segurando o riso, pedindo desculpa ao rapaz. 

 

Eu não caibo num pronome pessoal do caso reto

Um dia eu viro verbo de uma semântica vulgar

Não sou oblíquo

Não me espedaço pra caber em lugar qualquer

Estou num espaço que não há corpo

Não há rastro

Eu sou agramatical

Bem remoto sintaticamente

Longe da breguice tradicional

Que faz distinção entre mau e mal

(Keké, Água, Sal e Açúcar – livro nunca publicado)

 

A poesia mais amadurecida dos últimos anos tem estado fortemente ligada à produção de audiovisual que junto com Lia Malcher idealizamos a produtora documental Formiga de Fogo. Meu pai, que também é cineasta, nascido no Maranhão, veio para a Amazônia na década de 70 atrás das promessas de ouro, em um garimpo na Cidade de Itaituba. De amarelo no garimpo, meu pai conta, só encontrou malária. Semianalfabeto, com a pobreza escancarada na porta trocou o revólver do garimpo por uma máquina fotográfica, veio para a cidade de Santarém e desde lá nunca mais largou a câmera. Ofício que ensinou para todos os filhos.  

 

Tapajós Livre! Maicá Livre!

 

A gente esfrega o pé um no outro

Formiga de fogo passou ali

-Faz é tempo –

O fogo da formiga não respeita o tempo

Arde agora como ardia há meia hora

Tempo é coisa de gente não de Formiga

O jambu formiga, faz na língua aparelhagem

A pimenta de cheiro não arde

Não queima

Só deixa cheirosa a comida pavulagem

Quem cura é folha

É casca

É raiz

Esse rio não é minha rua, é minha casa

Minha história

Então se saia com essa balsa

Com essa usina

Hidrelétrica é morte sem metáfora,

palavra sem gosto que não serve nem pra poesia

Energia que queima em hidrelétrica é espírito dos encantados

Energia limpa é peixe elétrico: poraquê!

O motor mói a mãe d’água

Depois, sem vida, água represada

É cemitério de alma morta

Pálida

Se saia que esse rio é minha casa

(Keké)

 

 

 

O filme documental Mangarataia: mulheres com deficiência na Amazônia é o primeiro filme da nossa produtora, Formiga de Fogo, e foi o resultado das minhas pesquisas de mestrado sobre capacitismo, tendo já publicado uma  exposição fotográfica com mesmo nome, premiada na Lei Aldir Blanc- Pa, Fotoativa. O documentário é dirigido por Lia Malcher e eu assino duas poesias autorais. O filme foi premiado no edital Protagonismo Amazônico no Cinema, da diretoria de Cultura da Universidade Federal do Oeste do Pará. O documentário está disponível no Youtube, no canal da Formiga de Fogo (https://youtu.be/D9nAuW8eZXI).

 

 

 

Página no instagram:

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@Formigadefogo.filmes