A morte manifesto de Jaider Esbell

 

 

por Marcelo Ariel

 

 

Um dos fatos mais impactantes deste ano foi a morte voluntária do artivista indígena Macuxi Jaider Esbell. Sim, ainda está em curso a morte de mais de 600 mil pessoas vítimas da Covid-19 mas isso ultrapassa a condição de fato, é impensável e ininteligível, como se um mar inteiro secasse diante de nossos olhos e o suicídio de Jaider foi como uma metáfora enigmática da morte dos mais de 600 mil seres humanos na Pandemia. É isso que o torna ainda mais terrível, sua condição de metáfora e manifesto. Antes de prosseguir na tentativa impossível de colher neste gesto definitivo algumas reflexões maiores, faço a seguir uma pequena colagem godardiana de excertos de falas e textos de Jaider retirados de um precioso livro dedicado a ele,  lançado pela Azougue Editorial dentro de sua Coleção sobre grandes expressões indígenas, a Coleção Tembetá, então paradoxalmente com a palavra e no fundo do silêncio: Jaider Esbell 

“A minha arte nem eu mesmo a categorizo. É forte e poderoso o fluxo e o processo rompe as passagens a ponto de não caber na mão exigindo a alma (…) Queremos arte transformadora ou entretenimento? Queremos paisagens ou consciências? Essa foi a minha forma de me colocar no mundo. (…) Como artista tudo para mim é substância (…) A arte mostra paisagens já formando outras. Paisagens são composições que independem e partem, na prática, da ideia de plataforma multidimensional (…) Na minha abordagem com  a literatura (…) É onde eu consigo diluir boa parte da minha relação com o grande mundo dentro desse permeio de realidade e fantasia. Uma certa forma de como eu interpreto a vida, de ter essa noção mitológica da transformação dos mundos e da fluidez entre o material e o espiritual. E até mesmo o mundo no meio das florestas, o mundo no meio das montanhas e o mundo debaixo das águas. É a mistura muito latente em mim. E isso remete também  a essa busca por autonomia, de estar o mais livre possível. De que, quando bater a vontade de largar tudo e virar bicho e sair no mato, também conseguirei  fazer (…) Tudo parecia bem mas, os bens de uns são as ruínas dos outros. Os minutos passam e é a própria eternidade. Ninguém vê ou sente a agonia banalizada. Nessa primeira abordagem já está claro? Claro, não vou contar o segredo de ninguém. Minha mãe nunca me disse: não fale com estranhos. Ela sabia. Todos somos estranhos. (…) Hoje, estou aqui e vou te dizer: gosto mesmo dos estranhos. Eles são nossos reflexos e você sabe, reflexos encantam, e haja vida para buscá-los (…) Chega a hora da onça beber água. A onça, o maior em nossa natureza. A hora da nossa onça beber água é algo que talvez só aconteça uma vez na vida. Em resumo é o momento crucial para nossa evolução ou fim em  fracasso (…) A hora da onça beber água é quando ela tem de olhar para si mesma, no espelho d’água e ela estará exausta, fraca e vulnerável. A hora da onça beber água é um momento de extrema renúncia (…). Resiliência, e altas habilidades são requeridas nessa hora. Quando se passa pelo momento da onça beber água, e ela passa (…) é a garantia de plena natureza eternamente viva.”

Convivi pouco mais intensamente com Jaider durante o processo da peça-poema-ensaio MAKUNAIMÃ O MITO ATRAVÉS DO TEMPO.  Fizemos um ensaio alguns dias antes de sua partida voluntária que resultou em um importante registro em vídeo disponível no  página do Youtube da Casa das Rosas. Os pensamentos que podemos colher do gesto do meu colega e amigo Jaider são como a luz inesperada de um relâmpago num dia claro, pensamentos abstratos de uma perplexidade muda que se move como uma grande serpente no fundo de tudo o que está acontecendo conosco, neste ano de perdas, de alegria sem esperança e nós de sonho que jamais poderemos desatar.

 

 

Marcelo Ariel é poeta e vive em São Paulo.