Lia Petrelli
Mais do que uma vez na vida sentimos coisas sem nome. Quer dizer, nome, nome mesmo, certamente deve ter. Provavelmente numa língua estrangeira, numa língua sem lugar, numa língua individual, nossa, interna. A palavra, por vezes, bloqueia o sentir. É preciso que se sinta, só. Não é assim? Mas guardar, lá dentro, lá no fundo, não parece ser uma ideia viável para algumas coisas que nos perpassam o corpo. Senti isso muitas vezes, e de tanto sentir e precisar acabar com a palavra que cala o sentimento, encontrei uma linguagem, um tipo de escrita que não precisa de palavras, nem de signos, nem de símbolos, só precisa que se sinta, e que escorra para fora do corpo através das mãos.
Foi em 2015 que aprendi o nome dessa linguagem: escrita assêmica, e junto entendi que sempre articulei mais essa escrita do que a que aprendemos a caligrafar na escola. Trata-se de uma linguagem nascida com o teclado e com a assombrosa premissa de que a escrita à mão, assim como a pintura, estava prestes a morrer. Tudo isso sempre foi previsto por filósofos, sociólogos e pensadores do passado, quando ainda a máquina de escrever invadia a vida cotidiana – num ritmo muito mais lento do que o que aconteceu com o teclado na década de 90.
Percebendo estes movimentos dois poetas visuais, Jim Leftwitch (poeta estadunidense), e Tim Gaze (guitarrista australiano), passaram a discutir formatos que desprendiam o ato de escrever das palavras conhecidas pelo mundo. Decididos à não sucumbir à reprodutibilidade técnica da comunicação, sempre trocaram cartas sobre o assunto e, juntos encontraram um termo utilizado por Roland Barthes em “O rumor da língua” (1984) e por Jacques Derridá, em “Dissemination” (1984). Na ocasião, Barthes utilizou o termo “assêmico” para descrever uma palavra derivada de um erro tipográfico (aquela – awuela) e acabou por aplicar no que chamou de significado puro, articulação que poderia libertar a linguagem de suas significações pré- estabelecidas, fazendo com que as palavras pudessem ressurgir em toda a sua “eflorescência” (nas palavras do próprio pensador). Derridá utilizava o termo “espaço assêmico” para explicar o espaçamento entre palavras, o filósofo escreveu que os espaços existem apenas para que possamos entender o texto, mas no fundo, eles não significam nada.
Investigando mais a fundo, os poetas perceberam que a semântica do termo “assêmico” fala sobre a menor unidade de significado, que por si só quer dizer que a capacidade de um signo de produzir significados pode não existir. Intrigados com essa possibilidade e aflitos com a premonição do esgotamento da escrita à mão, entenderam que justamente por estarem perseguindo um ideal, uma impossibilidade, era exatamente o que deveriam fazer, simplesmente por essa razão.
Hoje, também sabemos que na medicina este termo é usado para falar de pessoas que sofrem acidentes onde são danificadas as áreas de comunicação do cérebro. Por mais que estas áreas sofram lesões, as pessoas que sofrem de assemia não deixam de se comunicar, ao contrário, elas passam a inventar uma linguagem própria e seguem estabelecendo outros tipos de comunicação que não precisam articular letras, sons e gestos. O termo passou a ser utilizado por psiquiatras como a explicação para um efeito de confusão que qualquer pessoa pode sentir quando se depara com alguma imagem, ou som, que necessita de um pouco mais de atenção para que seja decodificada.
Nesta linguagem as noções de escrita levam em consideração as observações de Barthes, que publicou mais de uma vez que escrever não é digitar. Escrever é um ato que só pode ser articulado quando nossas mãos encontram a superfície do papel, onde nossas emoções podem atravessar o corpo por completo e as alterações sentimentais podem ser observadas de acordo com o acontecimento. Como toda nova descoberta implica alterações de conceitos, há um tempo artistas assêmicos tem se utilizado dos mais diversos suportes para desenvolver os desdobramentos desta linguagem, não se encerrando simplesmente na escrita – e é aí que eu entendo a linguagem assêmica como um punhado de sensações de deriva.
Entender como a escrita assêmica opera em suas nuances mais profundas pode ser complexo e sequer tentarei esmiuçá-las aqui, mas sei que é importante mencionar que artistas assêmicos tem criado uma rede de apoio e pesquisa independente, fazem movimentos de auto publicação o tempo todo. Utilizamos a internet como meio de propagação visual e primeiro contato, mas seguimos tecendo outras redes através da arte postal, por exemplo. Fica decidido entre a comunidade que a imposição de regras é algo que nunca deve acontecer, justamente por ainda estarmos perseguindo o ideal e o impossível proposto pelos cunhadores do termo.
Neste momento estou desenvolvendo a tradução do primeiro livro acadêmico publicado sobre a história da Escrita Assêmica “Asemic: the art of writing”, de Peter Schwenger, e durante o processo me vi implicada em entender esta linguagem diretamente através do meu corpo, trazendo a transdução para o campo do sensível, entendendo simultaneamente a passagem de uma língua para outra e a compreensão da própria linguagem. Pode ser que a tradução em si seja ínfima diante da proposição que Peter me fez quando demonstrei meu interesse em trazer este conhecimento para o Brasil. Ele me disse que seria muito mais valioso que eu introduzisse a linguagem através do contato direto com as pessoas, propagando a linguagem e articulando um possível mapeamento de artistas que fazem isso por aqui há muito tempo, como Mira Schendel, Edith Derdyk, Antônio Bandeira, Antônio Dias e tantos outros que não precisam do nome ou das palavras para desenvolver tudo aquilo que sentem.
Lia Petrelli (1996), paulista, é artista transdisciplinar, Bacharel em Artes Visuais, pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo [2017] e formada em Psicanálise Clínica, pelo Instituto Brasileiro de Psicanálise [Campinas, 2020].
É autora dos livros “De dentro à flora”, lançado pela Editora Caravana [MG, 2021] e “Só Eu Penso Assim?”, lançado de forma independente na [KindleStore, 2020].
Desenvolve experimentos visuais e sonoros com no programa de podcast Querência; é roteirista e diretora de arte de clipes e cinema.
Pesquisa a linguagem assêmica desde 2015 e oferece laboratórios criativos para crianças e jovens adultos, criando a rede de pesquisa de forma independente.
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