Exercícios para uma escrita carinhosa

 

 

Gabriela Oliveira

 

 

Aos nove anos eu escrevi meu primeiro poema, num caderninho rosa, da barbie, minha avó tinha comprado naquelas revistinhas que vendiam de tudo, ter um caderno me ajudou a escrever e acredito que foi um dos primeiros incentivos para continuar. Desde então, escrever sempre esteve comigo, como diário, um bloco de anotação, os post it’s, acompanhou as demandas da vida adulta, as listas, as cartas de amor e hoje, como professora, me coube pensar a escrita para meus alunos.

O começo de dar aula como eventual me trouxe a possibilidade de entender como as crianças e os jovens de escolas públicas estavam escrevendo nesse tempo, em que nos dedicamos às inúmeras mensagens de whatsapp, aos áudios acelerados e os vídeos do tiktok, não são ruins, mas escrever é outro lance, é um ensejo. 

Foi num dos primeiros dias de aula, que decidi arriscar uns velhos exercícios que tinha visto no livro “Escrevendo com a alma” da Natalie Goldenberg, optei por escolher aqueles que poderiam ser mais particulares, lembro de um aluno dizer “professora você gosta das nossas histórias, né? então eu vou te escrever”, ele e os outros tantos alunos me escreveram e eu passei manhãs e tarde sabendo mais da vida deles do que da minha.

A cada aula numa nova turma eu passava cerca de três exercícios de escrita, o primeiro era: Qual sua lembrança mais antiga? Por ser o primeiro, era o que causava mais estranhamento, porque a gente não aprende a lembrar, nós lembramos naturalmente e quando eles liam aquela pergunta, as caras e as bocas meio sem entender, ou perguntando alto pra quem quisesse ouvir como é que se lembra da coisa mais antiga se não lembra nem do que comeu ontem? Todos riam e ao mesmo tempo, começavam juntos a conversar e trocar suas memórias, então pensei que apesar de ser um exercício de escrita acabou sendo também, um momento em que a lembrança de um é tão interessante que o outro quer escutar, tem curiosidade por saber.

A sala ficou então entre as lembranças de aniversário, o dia em que alguém comeu terra, a primeira vez que lembrou que a avó deu um sorriso quando ainda era criança, a primeira vez que se andou de moto com o pai, o livro que ganhou do amigo que era de outro país, a primeira vez na praia, a ida ao cinema, a mãe que abandonou, o pai que morreu… São tantos escritos, a letra às vezes insegura, às vezes duas linhas e uma lembrança forte, tem aqueles que escrevem bastante sem pensar muito, e eu não me canso de pensar, como escrever possibilita esse aprender a viver. Muitas vezes pensei que os poetas dariam tudo para ter o que eles escrevem e como escrevem.

O segundo exercício era para descrever um dos avós ou alguém que fosse importante, as perguntas que surgiam aqui eram mais certeiras, se descreve como a pessoa é fisicamente, ou descreve de outra maneira, e eu os deixava livres para escolher como seria essa forma de narrar. Eis que percebo também, que o assunto avós é delicado, alguns não conhecem, outros já perderam os avós, às vezes narram de maneira triste e pedem “prô, não mostra pra ninguém porque esse segredo é só meu”, e eu prometo que não mostrarei porque aliás, o exercício é só deles para eles, a parte do coletivo surge como uma contingência. Alguns preferem contar como é a mãe, a figura forte da mãe brasileira se vê no traço de meninas e meninos, aquela que sustenta, a que ensina, a que cuidou da família inteira, o amor não deixa de plasmar nessa escrita tal como “a minha mãe, porque ela fez de tudo pra mim e eu amo ela”, eles escrevem. Como alguém que me vê pela primeira vez, escreve e me entrega essas particularidades? Foi o que me pergunto ainda hoje e agora.

O último exercício passou a ser mais político, no sentido de que agora mais do que as lembranças, eles evocavam uma indignação, teriam de escrever sobre as ruas da cidade. E escreveram, entre as boas lembranças como o soltar pipa, o andar de bicicleta, dar grau de moto, ao mesmo tempo há os inúmeros bares cheios, os barulhos, alguns falaram dos fofoqueiros e dos curiosos como se fossem pequenos etnógrafos ou cronistas, reclamam da quantidade de lixo, do medo do irmão se envolver com drogas porque as ruas são perigosas, outros contam que a rua é cheia de casinhas uma em cima da outra, alguns falam das ongs, e por assim vai.

Contam as histórias das ruas com outras histórias, o ponto do olhar deles é uma das coisas mais bonitas, fez me lembrar o livro do João do Rio, “A Alma encantadora das Ruas”, em que o autor nos apresenta as tantas faces das rua e como se entende um povo através dela, por ser um portal do tempo e também, da memória.

Fiquei pensando porque me apaixonei tanto pelo que escreviam, e acho que é essa naturalidade de narrar o cotidiano de uma forma carinhosa. Dava para perceber que alguns além de escrever colocam risos como o kkkkk ou o ahahahahhaah como uma forma de diversão também, outros quando era algo triste adicionavam a carinha 🙁 dando uma intensidade a mais, ou o toque digital que tanto os acompanha na escrita.

Por fim, entre tantos relatos, percebi que incentivar esses alunos a escreverem sobre suas memórias, os colocam no lugar de possíveis narradores de si, o narrador a figura que Walter Benjamin já evocou um dia, aquela que para o filósofo na sua época carecia de narrar as experiências e de continuar existindo, pode retomar através desses jovens que de maneira tão vívida, apresentam o mundo para nós através de uma escrita que se pode ler até de olhos fechados.

 

*foto da capa de Gabriela Oliveira (@olivgabs)

 

Gabriela de Oliveira, formada em filosofia pela Universidade Federal de São Paulo e professora na rede Estadual de São Paulo. Atualmente pesquiso e estudo a relação da memória com a literatura e a escrita, especificamente a partir do livro Cem anos de Solidão de Gabriel García Marquéz.