por Jéssica Silva
Ganhei este livro, Olhos D’Água (Conceição Evaristo), em agosto de 2017. Era o meu aniversário de 24 anos. Já fazia um tempo que tinha ouvido burburinhos sobre a obra e a cada dia que passava sentia um desejo ainda maior em ter o livro. Em vários momentos comentei com minhas amigas que queria comprar o livro e a Carol Santana ouviu direitinho, tanto que neste aniversário de 2017 ela me deu de presente. Foi uma alegria sem fim, pois o meu contato com a literatura sempre foi uma desventura e acredito que Olhos D´Água me permitiu entender o que seria então essa tal aventura literária.
Gosto de livros impressos, de poder tocar, grifar, voltar as anotações, pensar e criar a partir daquele encontro. Principalmente, quando as histórias construídas nos trazem a sensação de ser íntima a autora e é esse sentimento de identificação que me aproxima da obra.
Li Olhos D´Água com a ânsia e um desejo de devorar o desconhecido, de perceber o novo, de sentir as nuanças e tessituras que saltam ao longo das páginas e que os meus olhos conseguiam constatar. A identificação foi instantânea; era possível me ver na/ao lado de cada personagem que Conceição Evaristo apresentava ao longo da obra. Era a segunda vez em minha vida que eu conseguia ler um livro sem sofrimento, sem abandonar, sem adiar, e isso aos 24 anos; a única vontade que existia era de perambular pelas páginas e ao mesmo tempo prolongar o seu fim.
Em Olhos D´Água, Conceição Evaristo coloca uma lupa sobre a diversidade da população afro-brasileira, tratando de temas caros como a pobreza e a violência urbana que nos acometem. No entanto, Conceição Evaristo consegue dar vida a personagens sólidas, sensíveis, complexas e reais sem apelar para o sentimentalismo. Dessa forma, consegue incorporar a contextura poética à ficção e, assim, seus contos nos trazem um mosaico de mulheres: Ana Davenga, a mendiga Duzu-Querença, Natalina, Luamanda, Cida, a menina Zaíta.
Escreviver é quando a autora escreve a partir da sua vida, condição e experiência, por isso a autora consegue criar esse vínculo com o leitor desde o primeiro conto. São quinze contos curtos, no entanto muito densos, e através da escrevivência Olhos D´Água retrata as tramas reais do cotidiano brasileiro, em especial de mulheres negras. São mulheres de diferentes idades e experiências, porém carregam marcas de uma sociedade hifenizada que as colocam num processo constante de “costurar a vida com fios de ferro”.
O encontro com este livro coincidiu com o período em que estava cursando o mestrado e ainda hoje essa obra me atravessa. No conto “A gente combinamos de não morrer” um trecho sobressalta e me afeta: “a minha mãe sempre costurava a vida com fios de ferro”, ecoou e ecoa em mim. À época estava produzindo um documentário sobre mulheres negras e ao pensar qual seria o nome do documentário, relembrei dos encontros e desencontros das mulheres de Olhos D´Água e entrelacei com as mulheres que compunham o documentário que estava dirigindo. Esse insight foi essencial para encontrar o conceito de escrevivência, o qual sustentou a minha pesquisa, sobretudo para nomear o documentário: “Costurando a vida com fios de ferro”.
Por falar em escrevivência, a autora utiliza como recurso o neologismo, que neste caso é a junção de duas palavras. Lembro-me de uma entrevista em que a Conceição Evaristo fala que o Brasil é uma sociedade hifenizada e isso fica impresso na estética construída dentro da sua escrita que parece despretensiosa, mas se mostra marcante identificando a sua autoria.
Como construir personagens humanos quando estes são negros? Em especial, tratando-se de temas tão sensíveis como fome, sexualidade, violência, aborto e suicídio. Conceição Evaristo consegue, em meio a extrema dor, criar personagens humanos ao escreviver para além da pornomiséria, com histórias cheias de amor e falso amor, de lágrimas verdadeiras e encenadas.
São personagens que encontramos ao abrir o portão da nossa casa, que vemos passando na rua ou talvez seja nosso vizinho ao lado. São nossas avós e tias, nossas amigas ou a menina que naquela manhã de quarta-feira sentou ao seu lado no ônibus.
É com esse fio de ferro que Conceição Evaristo costura o livro e conduz o leitor até o último conto com maestria e o faz consciente do quão obras como essas são necessárias, trazendo sensações, inquietações e interrogações bem como lágrimas e sorrisos que geram identificação. Ao fim do livro, fiquei pensando nas outras obras da Conceição Evaristo que ainda não li, pensei ainda em como esse livro mudou a minha percepção sobre o universo da leitura. A partir daí mudei o conceito em que sempre achei que detestava ler, acho que só não havia encontrado meu par perfeito para algumas aventuras.
Sou a Jéssica Silva, tenho 28 anos e ando escrevivendo tudo aquilo que atravessa a minha existência. Traduzo o que sinto, o que vivo, o que experiencio em narrativas escritas e audiovisual. Cria das periferias do Extremo Sul Baiano, resido em Teixeira de Freitas – BA. Sou um corpo-movimento que busca inspiração nos lugares onde insurgir como artista e pesquisadora. Diretora e roteirista do filme “Costurando a vida com fios de ferro” (2019). Em 2021 minhas escrevivências ganham vida e se concretiza em obras audiovisuais premiadas, dentre elas “Amor preto como potência” que conseguiu o segundo lugar na 4º Mostra Itinerante de Cinema Negros – Mahomed Bamba-2021, e “Dançando com o vento” que foi premiado na Mostra Virtual de Dança – Criações em Dança (2021). No meu instagram ( https://www.instagram.com/jeez__z/) partilho cotidiariamente minhas produções.