Elogio aos livros, por Edith Derdyk

“Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido vegetal de folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que o vento em folha de livro.
Todavia, a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania, varrendo o podre a zero.

Silencioso: quer fechado ou aberto,
Incluso o que grita dentro, anónimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam as suas redes.
Mas apesar disso e apesar do paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.”

JOÃO CABRAL de MELO NETO

 

“Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.

Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.

Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou  o que é muito pior  por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:

Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.”

CAETANO VELOSO in: LIVRO_CD


Costuro os versos da canção Livro de Caetano Veloso ao poema Para a Feira do Livro de João Cabral de Melo Neto – versos voluntariosos que elogiam o livro – este campo de pouso e arremesso, de pausa e faíscas estelares, de folhas ao vento e projéteis radiantes.                          

E entre a árvore vincada na terra, em João Cabral, com suas folhas fricativas e labiais de onde parece aparecer os signos inscritos e sobrescritos da biblioteca do mundo e o espaço sideral de Caetano onde ‘tropeçamos desastrados’, ecoando radiações  rotativas e expansivas de um continuum da arcada que julgamos estar acima de nossas cabeças sem nos apercebermos que o planeta terra habita o cosmos – entre a terra e o céu algo nos acontece.

Nós, sob o vento da folha a folha  que se folheia ou se desfolha podemos lançar mundos no mundo, podemos simplesmente escrever um: a folha de um livro repete vãs palavras muitas páginas; e assim o mundo se faz num ‘feito sendo’ sob os códices por virem de Maurice  Blanchot e/ou como se tudo existisse para terminar num livro, seguindo o poeta Mallarmé que escreveu Um lance da dados jamais abolirá o acaso, livro inaugural para pensarmos  na potência do livro como ‘espaço poético’, ele, o livro em si.

Assim SOMOS palíndromos, constelando sentidos tipo ‘ligue os pontos brilhantes que emergem da escuridão eterna’ e as figuras aparecem –  no universo dos livros, o contágio ou a empatia entre as palavras são um dom. 

Costumo trançar o poema lançado ao vento na voz de Caetano ao poema inscrito no lânguido vegetal de folha folha de João Cabral porque a frase, o conceito, o enredo, o verso, mais do que imita o vento, profere-o.

A espinha dorsal de um livro – a coluna costurada – junta todos os fólios e delineam um horizonte infindo – de onde tudo vem e para onde tudo vai. E, dessa estrada que vai do nada ao nada, esta linha de costura nos conduz a um local ubíquo, tal qual o Aleph de J.L.Borges, apontando pra a expansão do Universo incluso o que grita dentro, anónimo.

Caetano constela  o livro e a presença das constelações rotacionam a coluna vertebral de todos os tempos num espaço expansivo; João Cabral incorpora a matéria vegetal, de onde  o livro nasce e encarna folhas-asas que se desfolham de forma radicante.

Aqui acontece um elogio ao livro que diferentemente convergem pelas  diferenças que se aproximam – eis  nossas florestas diversas, múltiplas, nada monotemáticas. Sim, ‘da adversidade vivemos’ nos ensina o artista Helio Oiticica.

Não podemos deixar  que o atual Farnheit queime nossas memórias, nos deixando à mercê diante da promessa de um desastre. Por estas e outras, o nosso eterno elogio aos livros que nos constituem!

Aqui agradeço ao curso ministrado por João Gomes, A Escritura do Desastre, que aconteceu aqui na A Casa Tombada, e que me impulsionou esta escrita. E também à possibilidade de aprofundar o universo dos livros no Curso de Extensão que agora acontece na Casa, coordenado por mim – Livro de Artista e suas extensões gramaticais.                                                   

https://acasatombada.amarelinha.cc/23-07-a-escritura-do-desastre-com-joao-gomes/

https://acasatombada.amarelinha.cc/01-09-livro-de-artista-e-suas-extensoes-gramaticais-curso-de-extensao-universitaria-coordenacao-de-edith-derdyk/

 

Canção LIVRO de Caetano Veloso

https://www.youtube.com/watch?v=XV5CC0tBYe4

por Edith Derdyk

 

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