por Renata Penzani
O escritor norte-americano David Foster Wallace (1962-2008) é um dos meus observadores preferidos do mundo (me recuso a conjugar artistas no passado). Em “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo“, um livro de ensaios publicado em 2011 pela Companhia das Letras, ele narra uma cena no supermercado. Diz que podemos escolher nos irritar porque alguém na nossa frente anda muito devagar, ou porque uma determinada pessoa deixou o carrinho fora do lugar.
Para o escritor, qualquer coisa desse tipo está sempre prestes a nos tirar do sério e do eixo. Exceto por um detalhe: podemos escolher não, e essa é a verdadeira educação humanista: importar-se com o outro justamente porque esse outro não somo nós. Porque, para ele, é a vida nos deixarmos borrar pela vida do outro. Deixar entrar em nós as angústias, as dores, as histórias dos outros. É sobre isso esse texto. Sobre ser gente. Parafraseando o Caetano, “gente é pra contar, não pra morrer de fome”.
Porém, minha indicação de leitura não é o livro citado acima (embora seja; já está sendo). Mas sim o “Todas as pessoas contam“. Contrariando o que eu mesma disse – que não falaria muito de lançamentos neste espaço que A Casa Tombada me concedeu – cá estou, sugerindo um livro lançado neste mês de dezembro. A escolha é mais por motivos da inevitabilidade da coisa do que por desejo jornalístico de apresentar o inédito. E, se foi inevitável, não é senão por isso: que livro!
Se você ainda tem algum fiapo de pré-conceitos em relação a livros classificados como “infantis”, sugiro que comece por aqui. Um livro como esse desmonta a falsa ideia de que ele supostamente não é para alguém que deixou de ser criança em dois minutos. É para você, sim. E é também para a criança. E para o adolescente. E para quem mais entrar nele, de preferência com tempo, de pés descalços, deitado na rede, com uma almofada confortável para aconchegar o livro no colo: provavelmente vocês passarão muito tempo assim (eu passei).
A autora é a ilustradora e escritora Kristin Roskifte, da Noruega. A definição que ela faz do livro é a mais simples e por isso justa e suficiente: “este é um livro de contar sobre a humanidade”. Seria o bastante a se dizer sem estragar a experiência de descobri-lo.
Página a página, a autora apresenta uma cena como se fossem retratos de um instante em que cada vida antes invisível é colocada em perspectiva. Em uma fila, há nove pessoas no elevador, sete. Em uma festa de casamento, diversas. Na prisão, outras tantas. No hospital, inúmeras. Todas elas são um número. Mas cada uma é também uma história.
O livro descreve o que elas estão fazendo em cada cena, e sugere ligações entre elas – as cenas, e também as pessoas. Os acasos que nos levam a estar onde estamos, e nos unem mais do que imaginamos. A vida humana como uma imensurável rede de conexões infinitas que se cruzam de maneiras impensáveis.
A criatividade da autora é tanta que (e aqui eu peço licença para um spoiler razoavelmente estraga-prazeres) cada detalhe conta uma história: do objeto no chão do quarto em uma cena até o coadjuvante que aparece no fundo de outra, do lado de dentro da janela. Todos são personagens da mesma vida que acontece todos os dias e nos liga ao mesmo fio de existência.
Somos pouco mais de 7 bilhões de pessoas no mesmo planeta, em comum temos uma biografia e o currículo de terráqueos insignificantes o suficiente para não representar mais do que uma fina linha do tempo na história do universo. Somos pessoas que esperam um telefonema, que quebram o braço aos cinco anos, que sentem saudade, que não sabem ver as horas, que engasgam com o feijão, que criam dois filhos sozinhas, que têm medo do escuro, que aprendem sozinhas a falar espanhol, que não falam com o pai há três anos, que viajam para nunca mais voltar. Somos pessoas que irritam as outras numa fila de supermercado.Pessoas que viram textos de David Foster Wallace.
Voltando ao livro de Kristin. Poderia ser “só” (todas as ressalvas feitas ao “só”, porque eu verdadeiramente adoro bons livros de contar, os chamados counting books). Mas acabou sendo um inventário sobre ser gente. Um acervo de pessoas humanas. Uma espécie de carômetro do mundo, onde você certamente vai se reconhecer. E reconhecer o vizinho, e a moça da padaria, e o zelador da escola, e o porteiro do prédio, e a mãe, a tia, o primeiro amor da segunda série que de repente vem à memória: será que se casou? Pode ser que tenha se mudado de cidade, ou de país.
Um livro que, no fim deste ano cheio de limitações às nossas presenças uns com os outros, vem lembrar que desse nó não nos soltaremos tão cedo. Um nó embolado de gente, de histórias, de segredos só nossos e ao mesmo tempo iguais aos de todo mundo. É assim particular ser gente. É assim universal também.
“Todas as pessoas contam” – Kristin Roskifte
Companhia das Letrinhas, dezembro de 2020