por Keila Knobel
Falar de “um livro tesouro” não é difícil, o difícil é escolher de qual falar. Fico de frente para minha estante de livros para salvar do incêndio. Você talvez tenha uma também. Há livros em quase todos os cantos da casa, mas a maioria fica no escritório, que é o primeiro cômodo mais próximo da porta de entrada (ou saída) da casa. Reservei um dos nichos da estante para colocar os livros que salvaria do fogo, na quantidade limitada aos que eu conseguiria carregar de uma vez. Encará-los assim pelo menos duas vezes ao ano sempre me obriga a fazer alguma substituição. Como agora. Qual dos livros do José Luís Peixoto deixo na estante do incêndio? Queria deixar no mínimo cinco, mas há tantos outros que precisam ser salvos. Então, Nenhum Olhar (de 2000, chegou ao Brasil pela Dublinense em 2018) ou Autobiografia (Quetzal, mas também Cia das Letras e TAG, 2019)?
Folheio Nenhum Olhar e releio os grifos, as páginas com post-it. Me fala, de cara, do nevoeiro dentro da vida, a entrar-me nos ossos, a cegar-me para o que não existe: as manhãs; o céu limpo; as primaveras; o conforto dos teus braços, pai. E já não era criança. Em casa, nas noites, não voltou o gigante. Enrolada no xale negro do meu luto, passava ao rés das paredes e as conversas paravam quando me aproximava e as mulheres ou os homens ficavam a olhar-me, como se me procurassem os olhos. Não vou mergulhar nessa dor hoje, hoje não, por favor. Mas fica na estante.
Autobiografia às mãos, meus pulmões se enchem. É desse que quero falar. Essa capa é genial, queria ter criado essa capa. O que é uma (auto)biografia, senão um amontoado de fragmentos? Ainda mais aqui, em que as histórias do José Saramago, biografado, e do José escritor se alternam e se misturam. Mas o livro não tem sabor a biografia, tem saber a gente (… a cadela levantou-se e caminhou devagar até às canelas dos homens, como se quisesse confessar alguma coisa mas lhe faltasse o idioma), a literatura (Não crê que as explicações inferiorizam o leitor?), a memória (E lembrou-se do Mercedes do pai numa estrada de areia solta, que idade teria? os pneus de trás a girarem sem chão, a resvalarem, o pai a amaldiçoar a estrada, Bucelas, Portugal inteiro, a mandar sair toda a gente do carro, a mãe e José; depois os homens a ajudarem).
Ao mesmo tempo em que a história me prende às páginas, me leva a mim mesma, a uma intimidade que eu nem tinha nomeado e que pensei serem só minhas.
… multiplicar ou dividir o número da senha até lhe encontrar um significado.
Contra o medo, as vogais bem desenhadas (…). Caligrafia de escola primária a proporcionar o conforto de um tempo em que não havia ameaças…
… Fritz escutava este contexto e entristecia, custava-lhe engolir a massa já mastigada dos biscoitos.
Vai para a estante do incêndio, no lugar de outro que minha cunhada também tem.
Há excomunhão, reservada à sua santidade, a quaisquer pessoas que tirarem, subtraírem, ou de outro qualquer modo alijarem algum livro, pergaminho ou papel desta biblioteca, sem que possam ser absolvidas até que esse seja perfeitamente reintegrado.