Além-mar, por Natalia Barros

Imagem: Maya Gabeira, Nazaré, 2020

por Natalia Barros

A água é uma chama molhada (…). Para dentro vai o misterioso caminho. Novalis

 

Penso em termos do mar, na imagem do mar ao ir de encontro à praia. Não é a onda que vem, é o mar inteiro que vem a cada vez, e é o mar inteiro que retrocede. Nunca é apenas uma onda, é sempre a totalidade do que vem e que vai…. Existe todo o questionamento do oceano, em suas profundezas, em seu movimento, na espuma que deixa atrás de si, no desenho delicado que deixa sobre a areia.

Edmond Jabès, numa entrevista para o Paul Auster – A Arte Da Fome, Editora José Olympio

 

A fronteira desloca-se de hora a hora. Erraticamente. Escrevi há dias que a presença angélica é de beleza, de louvor e de temor. Muitos dos que encontrei tem essa presença angélica embora, por razões que eu não alcanço, só dela captem a vertente do temor. Fogem, reflexo condicionado da identidade, quando seria possível, creio, trabalhar reflexo: em vez de fugir do temor, acolher o louvor e a beleza. Apoiar-se na força do anjo como vejo fazer no judô, no surf, e em alguns ditos desportos radicais.

Maria Gabriela Llansol – Inquérito às Quatro Confidências – Diário III, Editora Relógio d’Água 

 

Em fevereiro de 2020, Maya Gabeira bateu o próprio recorde de maior onda já surfada por uma mulher na história, com a nova marca avaliada 22,4 metros! Esse fato incrível aconteceu sete anos depois dela quase se afogar tentando surfar uma outra onda gigante nessa mesma praia, em Nazaré, Portugal. Em 2013, depois do acidente que quase a matou, ainda no hospital em recuperação, ela disse: “Fiquei muito atordoada e ferida. Tive de decidir se tentaria continuar surfando ou se era melhor me aposentar. Mas não estava pronta para desistir.” Pouco depois de acordar, ela pediu para ver o vídeo do acidente. “Eu queria ver o que tinha acontecido porque minha memória do acidente parava em quando desmaiei (..) Era importante saber o que eu tinha feito de errado.” Quando conseguiu voltar a treinar, ela resolveu mudar- se exatamente para essa praia, para observar e conhecer de perto aquelas ondas gigantes, às quais pretendia voltar, como realmente fez, só que agora em consonância com aquele oceano, com suas fissuras submarinas profundas e ventos surpreendentes em

alto mar.

 

Este ano parece que estamos vivendo uma enorme ressaca no mar, que por tempestades e mudanças atmosféricas bruscas, avança e reflui, expondo na areia lixos que não conseguimos mais esconder, memórias nebulosas, garrafas plásticas, restos de comida, ferros velhos, cacarecos, conceitos ineficientes e preconceitos falidos que resistem. Talvez uma maneira de passar por essa pandemia e sair desse ‘estado de ressaca’ seja olhar de frente e de perto, para o problema que nos aflige, e no qual estamos implicados até o último fio de cabelo. Precisamos aprender, observar de um novo ângulo, como o Enforcado – arcano XII – do Tarot que ao mesmo tempo em que está amarrado de ponta cabeça pode ver, por isso mesmo, o mundo de outro ponto de vista, outro ponto de vida ou de virada. Acredito que precisamos olhar o revés do mundo em detalhe, observar cada partícula d’água, cada brilho, cada fluxo de fúria e de maravilha para podermos entrar no mundo e criar com ele matéria e movimento. Reaprender a nos mover em consonância com a Grande Onda, ou como disse Llansol no texto acima: em vez de fugir do temor, acolher o louvor e a beleza.

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Imagem: Mariana Ardito – Paisagem além-mar.

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