Embriaguez, por Arturo Gamero

 

por Arturo Gamero

 

 

“Quando comparamos os triunfos de Alexandre com os de Dioniso,

compreendemos a diferença entre o poder histórico e a força elementar.”

Ernst Jünger

 

 

“VIGIO-ME, MESMO QUANDO CONSIGO DORMIR DEN- TRO DOS SONHOS, E UM DIA SEREI

AVE OU SEIVA, NA LUMINOSIDADE DAS TUAS MÃOS.

PARA TOCAR O LUGAR ONDE MINMHA SOMBRA SE CON- FUNDE NA TUA, NENHUMA METAMORFOSE DO CORAÇÃO
ME ATERRORIZA.”

Al Berto, Diarios. 21 de Janeiro 1984 / sábado

 

Na antiguidade a embriaguez era o signo da vertigem sagrada que coroava o homem com a luminosidade diáfana do eterno, o drogado era investido de um êxtase profético que o colocava no epicentro do culto a transmissibilidade da palavra, isto é, o enigma da palavra migratória. A embriaguez era um estado mágico em que as formas divinas assumiam a coloração dos fenômenos humanos. Intensificação dos estados de receptividade e de aproximação em relação ao elã vital caracterizado pelos estados unitivos em que o indivíduo dilui-se no interior da totalidade cósmica. A embriaguez era uma espécie de vidência através da qual os indivíduos compartilhavam a revelação de um Instante projetados para fora do tempo, num transe coletivo, experimentavam uma espécie de consanguinidade aos deuses submersos no líquido amniótico da origem. A embriaguez, portanto, respondia a uma demanda metafísica de festa da unidade com o todo, o cultivo da exuberância da beleza sob o sono magnético das letargias que vigoravam sob as luzes opalinas do luar. Talvez esse mundo tenha desaparecido sem deixar carniça como nos sugere o Heráclito provençal René Char em seu poema Suzerano de 1962, incluído no livro intitulado Furor e Mistério.

 

Em 1997, aos dezessete anos de idade, eu tinha ultrapassado alguns limiares e me exposto a intensidade de atos perigosos para alguém tão jovem. Eu havia descoberto a droga alguns anos antes, mas em pouco tempo a curiosidade havia rapidamente se transformado numa obsessão que hoje interpreto como uma avidez incontrolável que irrompera em mim por letargias suicidas. Minha mãe estava desesperada e a aflição de ver seu filho sucumbir verticalmente aos encantamento do vazio, levou-a a considerar a internação involuntária como uma solução possível. O resultado foi a minha permanência por um período de dez meses no interior de uma instituição destinada a recuperação de dependentes químicos que reunia todo tipo de desertores do mundo. Assim começa uma longa história que eu poderia lhes contar, na qual seria possível que algumas imagens da embriaguez, imagens colhidas em parte no esfumaçado da memória, em parte nos abismos deixados pela íntima erosão dos êxtases narcóticos, poderiam dizer algo a cerca da sinistra e talvez sagrada simetria entre a embriaguez, a literatura e a morte, mas também, a cerca da vida e da luminosidade vibrante que vez por outra se revela por um revés enigmático, através do qual, a noite mais escura faz cintilar com maior nitidez a claridade granulada das estrelas. Mas isso ficará para outra ocasião. Por ora, àqueles que se interessam pelo tema, me limito a recomendar a leitura do livro de Ernst Jünger, intitulado Droga, Embriaguez e Outros Temas. Publicado originalmente em 1978, o livro tem quinhentas páginas (literalmente) ao longo das quais percorremos fragmentos autobiográficos e ensaios nos quais a interface entre literatura e filosofia nos impede de separar o pensamento e a vida. Outro livro que gostaria de recomendar foi escrito por Peter Sloterdijk, intitulado Estranhamento do mundo, publicado em 1993. Encerro este brevíssimo comentário sobre a embriaguez citando as últimas linhas do terceiro capítulo do livro: Certamente, existir quer dizer sempre deparar-se com o inconveniente de ter nascido. Mas também significa poder procurar os meios de transformar este inconveniente básico na conveniência da descoberta do mundo. Contra a subjugação pela ausência do mundo, só a inspiração pelo brilho do mundo ajuda;… O antídoto eficaz contra as formas negras do estranhamento do mundo é a amizade do mundo que tateia de antemão o fio da simpatia.

 

creditos da imagem: Christine Floating in the Sea, St Barth’s, 1999Photography by Nan Goldin

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