por Ângela Castelo Branco
um dia alguém percebeu que escrevia e desenhava pedaços de algo nas paredes com o chuveiro ligado. Com as mãos, as mesmas preparadas para escrever e deixar as marcas sempre visíveis das palavras, ou para detectar e limpar imediatamente a sujeira do banheiro (ato condenado a ser pra sempre invisível).
noutro dia, percebeu que olhava há anos para aquele mesmo rótulo no café da manhã, lendo sem ler uma palavra, vendo sem ver uma imagem, e isso podia lhe trazer uma coragem (qualquer) para não representar o dia.
em algum lugar alguém se deu conta que aquele ângulo no corpo da mulher não era um utensílio de funcionamento doméstico, ou um balcão onde se podia encostar os cotovelos pra pedir um cafezinho.
e alguém se lembrou que já viu de perto um gato brincando com um novelo, aquele gato de Agamben. Ali, enquanto brinca, opera suas habilidades da caça. Mas não há o rato, há o novelo. E assim o gato esvazia o sentido da sua herança predatória para o qual ele foi predestinado.
Nem todo movimento do corpo humano é um gesto. Porém, há movimentos humanos que não se encaixam na economia das vontades e nos fins. A esses movimentos podemos chamar de gesto.
O gesto articula uma liberdade do movimento. Mas não é um movimento totalmente livre, como se existisse. Mas o gesto: movimento no qual a liberdade se exprime de alguma maneira.
Alguma maneira, alguém.
Um dia alguém, à sua maneira.
Talvez seja por isso que Larrosa, no livro Esperando não se sabe o quê, quando escreve gesto, coloca sempre a palavra maneira entre parênteses. Assim: gesto (maneira).
Colocar em parênteses. Tudo aquilo que é uma informação acessória deve estar entre parênteses. Pois, estando entre parênteses, informa a si mesma que é dispensável e que pode ser retirada.
Os gestos, assim como parênteses, podem não servir para nada.
Nenhum fim, apenas meio.
(não, não são os belos gestos que contam, nem a sua intencionalidade)
A possibilidade que o gesto anuncia é a de desvio, de introduzir alteridades em si mesmo, criando em nós verdadeiras defasagens íntimas. Estranhos poemas de um presente qualquer. Que o mostra, o exibe, o expõe. Gestas de presenças, cada qualquer à(s) sua(s) maneira(s).
um dia, alguém percebeu que tudo se movia quando ele se movia.
Com:
AGAMBEN, Giorgio. Por uma ontologia do gesto. Belo Horizonte: Chão da feira, 2018. Consultado em: https://chaodafeira.com/catalogo/caderno-n-76-por-uma-ontologia-e-uma-politica-do-gesto/, 20/06/2019.
FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Anablumme, 2014.
GALARD, Jean. A beleza do gesto: uma estética de condutas. São Paulo: Edusp, 1997.
LARROSA, Jorge. Esperando nao se sabe o quê. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.