Corpografias, o risco como rota, por Maruzia Dultra

por Maruzia Dultra

 

Era 2009 e era tudo novo para mim. A cidade, a universidade, conhecendo novos colegas, professores, o ambiente do ateliê, encontrando novas texturas de vida, vivenciando corpos de diferentes sotaques e distintas caligrafias de pensamento. Meu espanto com os lampejos filosóficos não me abandonava. A única linha possível de ser seguida parecia o limiar. Estava sempre entre: na ciência, na arte, na filosofia. No sono, entre o sonho e a vigília. As horas eram objetos moldáveis, a noite virava dia que virava… A pesquisa, que inicialmente era sobre vídeo interativo, se transformou em um estudo sobre o corpo do pensamento e, com o tempo, em velocidades variáveis, este se adensava.

 

Assim, fui gestando “Corpografias: incursão em pele imagem escrita pensamento” – minha dissertação do mestrado em Poéticas Visuais no PPGAV/ECA/USP. Junto a outras mãos, olhares e vozes, a criei no formato de livro-objeto, uma dissertação-obra que traz encarnada a ideia de que o corpo poético é um tipo de corpo do pensamento. Imbuída desta e de outras reflexões teóricas, inventei as estratégias poéticas corpar, textar e impelir, das quais se desdobraram outros corpos, texturas e peles a borrar as (in)definições de formato que envolvem uma dissertação-obra.

 

Desse modo, fabriquei um corpo poético a ser mexido, revirado, folheado pelo leitor, possibilitando que este também crie seu próprio corpo do pensamento, suas próprias corpografias. Pois, se o objetivo da pesquisa era falar sobre o corpo do pensamento e apreendê-lo como operador conceitual, ao mesmo tempo, havia a necessidade de propiciar uma nova corpação a cada encontro com o leitor. Daí propor uma leitura tátil, cujo operador poético é justamente o toque: tocar as partes desse livro-objeto como uma experimentação de pensamento, para um entendimento que passa pelo corpo do leitor e pelo corpo do livro.

 

É nesse sentido que “Corpografias” é um trabalho poeticonceitual em que o fazer e o saber habitam uma mesma fita de Moebius, de tal forma que as conjugações Saber Fazer e Fazer Saber se entrelaçam de modo decisivo no processo de criação. Tinha o risco do resultado parecer uma ilustração da teoria, mas foi preciso assumi-lo e acreditar na intuição e na aposta do trabalho como um objeto tátil que clama pelo toque do leitor, mais que um livro convencional, como o são os trabalhos acadêmicos tradicionalmente. Isso faria dele uma pele a ser sentida em suas múltiplas camadas, texturas e dobras. Pacto com o leitor através do contato com tato.

 

Tatear necessário também à leitura propriamente da palavra escrita, então feita ao modo de encartes, caderno e diário: capítulos  moventes, “Caderno Decurso” e “diário de corpo do pensamento”, nos quais as notas processuais foram tratadas como experimentação dissertativa. Tudo isso deu forma a uma espécie de licença poética da ciência em que o resultado científico coincide com o trabalho artístico e cartografa o próprio constituir-se da pesquisa. O texto verbal como tatuagem, que não apenas alça sentido com as palavras, mas também alcança sua carne, torna-se texto-imagem, fazendo dos traços riscados e arriscados desenho do pensamento, mesmo que isso signifique um desdesenho… Pois os desfalecimentos também fazem parte do pesquisar, do pensar, do percurso do pensamento.

 

Mesmo que isso significasse um desfazimento capaz de arrastar inclusive a mim, no devir da escrita-criação, cujo verbo capital é o outrar. E já não me reconhecia sob as mesmas formas de outrora, processo de transmutação a que estamos susceptíveis quando da entrega às intensidades da outridade. ‘Deixei minha pele nesse trabalho’ e, se antes falei que o gestei, me corrijo: fui parida por ele.

 

Convido a você, pessoa leitora, a passear pelas veredas dessas “Corpografias”:

https://www.livrideo.online/corpografias

 

 

fotografia: Fabiola Freire

 

 

Desenho de Branca de Oliveira (2012)

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