Carta aberta para Oyèronké Oyěwùmí

por Paola Damascena Possari

 

 

Peço licença às minhas mais velhas, como em Oyó, para iniciar essa prosa que provavelmente será atravessada por marcas da minha oralidade nordestina. E de início afirmo, sem dúvidas, que os nossos passos vêm de longe, assim como as nossas vozes.

Daqui, de uma pequena cidade no interior da Bahia, te escutei e descobri uma liberdade antes impensável. Foi através das terras de Ógbómósó em Oyó, Sudoeste da Nigéria, que descobri daqui das minhas bandas interioranas que a visão ocidental de mundo não é universal. Que já existiram tempos que nós não éramos rotuladas a partir do gênero, mas a partir de nosso conhecimento ancestral, a partir dos conhecimentos acumulados pela oralidade e pelas experiências.

Há mais de um ano atrás, antes mesmo de ser lançado no Brasil, li tua riqueza descrita em 316 páginas em espanhol, te escutei e não me restam dúvidas da potência da tua voz, acalanto e aconchego depois de muito pelejar.

Seus escritos emancipam e deixam claro: nem sempre e nem em  todos os lugares fomos estereotipadas como “homens” e “mulheres”, “macho” e “fêmea”. Descobri isso junto às minhas, em presença – fiz parte de um grupo de mulheres negras que desenvolviam um aquilombamento em espaços acadêmicos, e em memória – a partir das  memórias coletivas de tantas outras mulheres que atravessaram meu caminho até a academia.

Junto a elas descobri a construção de novos sentidos aos discursos ocidentais de gêneros a partir da perspectiva africana Yoruba.

Nessa carta me refiro à escuta em diversos momentos, porque entendi que a partir daí veio a sabedoria de povos de diásporas Yorubá. Em algum tempo a idade e a identidade cultural eram parâmetros legítimos de reconhecimento. E a escuta era uma grande ferramenta de manutenção dos ensinamentos de geração em geração.

Aprendi também que a dicotomia entre os gêneros como verdade irrefutável que em algum tempo nos contaminou não se deu somente no marco civilizatório colonial, mas inicialmente no período do tráfico escravagista no Atlântico, de modo multifacetado. A percepção distorcida de corpos generificados, subalternos e submissos é um violento convencimento colonial.

Aqui gostaria de apresentar um pouco da minha identificação pessoal e ainda mais íntima te ouvindo, logo no prefácio você admite; “Não estou propondo uma hermenêutica antimaterialista do corpo, o corpo foi e é material nas comunidades Yorubá”. Afirma que não é negar a existência do corpo, mas denunciar que as exigências sociais vinculados ao corpo não existiam antes do contato com ocidente, deste modo, para falar da categoria mulher foi preciso inventar, primeiramente, na dialética.

Voltando às apresentações, Sou filha de mãe solo, criada por três mulheres, em uma estrutura familiar de protagonismo feminino. Parafraseando seus escritos: eu tinha dimensão materialmente  que, diferente das minhas colegas, eu não tinha uma figura masculina em casa, mas somente na adolescência me percebi, através da dialética, não tendo um pai. Antes eu não fazia ideia de que eu precisava ter.

Eu dizia: “Sim, somos três mulheres.”, as respostas eram sempre: “Tadinha!”, “Oh! Que pena!”, “Eu sinto muito”, “Nossa, você não conhece seu pai?”. E durante muitos anos as reações não faziam sentido, porque eu nem me percebia com algo faltando – na verdade, não percebo. Foi através do contato com o outro e dos papéis sociais que eu me descobri uma criança sem pai.

Outra interpelação maturada por mim foi a sua proposta de ruptura à generalização dos fatos. O período pós-colonial e a categoria de gênero e subalternidade não determinaram as trajetórias de todas as mulheres.  Exemplo de Baále, grupo de lideranças femininas em Ógbómósó. Assim como com elas, a colonialidade não retirou o protagonismo das mulheres da minha estrutura familiar na produção de novas lógicas de funcionamento e subversão a  poderes construídos pela colonialidade. Finalizo dizendo que a leitura foi um presente em tempos de contínuas roupagens do sistema de gênero moderno colonial.

Cara/o leitora/or, se chegou até aqui, encare essa carta como um generoso convite às obras de  Oyèronké Oyěwùmí e as novas possibilidades de enxergar o mundo. Certamente você também será atravessada/o pessoalmente por ela.

 

 

Livro: A Invenção das Mulheres

Escritora: Oyèronké Oyěwùmí

Editora: Bazar do Tempo

Ano: 2021

 

 

Me chamo Paola Damascena Possari, sou de Ipiaú/Bahia, mulher cis negra, estudante de psicologia, pesquisadora. Filha de Ivani Ferreira Damascena, neta de Maria do Carmo Ferreira Damascena e bisneta de Luzia Alves Ferreira. Contato: [email protected]

 

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