Cidades invisíveis: vivemos como ratos ou andorinhas?

por Renata Penzani

 

Dizer que queríamos estar em outro lugar nesses tempos duros é quase redundância. Ser humano neste tempo espaço, nessa nossa vez de existir, talvez seja partilhar desse assombro duplo: o de sabermos que existimos e o de saber também que tudo o mais que existe, existe sem nós. Mesmo assim, sonhamos com outros lugares que não este, onde tudo parece acabar em meio a vírus mortais, guerras sem fim e depredação absoluta de naturezas diversas – vegetais, animais, humanas. Algumas ficções nos transportam para esses outros lugares, mas poucas conseguem fazer isso com o sabor de As cidades invisíveis, (Companhia das Letras, 2017) do Ítalo Calvino. 

 

(A edição que indico aqui é traduzida pelo Diogo Mainardi, por isso desde já me desculpo pelo inconveniente; cada caixa de bombons com seu Caribe, não é mesmo?) 

 

Estou relendo, mas cada linha tem o gosto da novidade, e é maravilhoso lembrar que os mundos imaginários são uma janela para a realidade. 

 

Ao descrever cidades imaginadas, o narrador faz um inventário de simbologias da humanidade. Tudo o que diz respeito ao gesto de ser humano está ali, desfiado em metáforas tão delicadas que parecem se desfazer no momento em que a entendemos, como efêmeros fiapos filosóficos que gostaríamos de poder guardar para sempre. E até nisso o livro é genial, porque nos obriga a relê-lo como se não tivesse mais nenhum esperando na estante. 

 

Cada releitura dessas dá a medida da subversão de que falava o Daniel Pennac em “Como um romance”, quando ele escreveu que relemos pelo prazer do reencontro. É preciso que algumas coisas se repitam para serem dadas como acontecidas.

 

Se você é do grupo que já leu e ainda vai reler esse livro um dia, tudo bem. Porém, se você está mais pra quem não sabe que história é essa, vale deixar uma sinopse rápida: no livro, o explorador Marco Polo é imcubido da missão de descrever as cidades do império mongol ao imperador Kublai Klan. Enquanto o primeiro empresta os olhos, o segundo empresta os ouvidos, como se um e outro não tivessem o sentido de que o outro dispõe. E por esse motivo ficassem presos um ao outro, um precisando ouvir o que o outro precisa dizer. 

 

Fiquei achando que esse é um jeito bonito de sugerir que somos fragmentados em nossos sentidos. Que somos tanto Polo quanto Klan, atrofiados de enxergar ou de escutar, deixando passar despercebidos todos os imensos reinos de detalhes que passam por nós todos os dias e poderiam recomeçar outros mundos a qualquer instante. 

 

Nesse ponto, o livro pode alcançar o feito de ser uma crítica aos sistemas capitalistas e antropocêntricos, que desumanizam o sujeito ao colocá-lo no papel de quem aperta o botão para a roda girar, e que portanto sempre estará ocupado demais para usufruir do espetáculo de vê-la girando. 

 

A linguagem de Calvino é rápida e precisa, o que não diminui sua vocação poética e encantatória, pelo contrário: espanta o leitor que não vai cansar de se chocar com a possibilidade de textos tão curtos hipnotizarem a razão tão profundamente que as cidades não só passam a existir, como de repente são a única explicação possível para conhecermos tão pouco os infinitos jeitos de ser e estar no mundo.

 

Algumas fábulas falam sobre o porvir, outras sobre o passado, mas todas têm um ponto comum, o de gritar para o leitor que nada é como parece. 

 

Uma das cidades descritas, por exemplo, chama-se Raissa. Março Polo a descreve como uma cidade infeliz. Até lembrar que uma sucessão de pequenos acontecimentos liga os fios invisíveis que unem as pessoas, os lugares e as situações. E por isso há sempre uma camada não vista por debaixo daquilo que os olhos veem. “De modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem mesmo sabe que existe”.

 

Já que cidade de Marósia se divide em duas: uma do rato e a outra da andorinha. Em uma metade, as pessoas vivem como ratos que se alimentam dos restos de alimento que caem da boca dos predadores maiores. Na outra parte, há a aptidão para o voo livre e leve das andorinhas. “Basta que alguém faça alguma coisa pelo simples prazer de fazê-la para que o seu prazer se torne um prazer para os outros: naquele momento todos os espaços se alteram, as alturas, as distâncias, a cidade se transfigura, torna-se cristalina, transparente como uma libélula. (…) Marósia consiste em duas cidades – a do rato e a da andorinha: ambas mudam com o tempo, mas não muda a relação entre elas: a segunda é que está para se libertar da primeira.”

 

Seria preciso transcrever o livro inteiro aqui para dar uma imagem a isso, mas como este é um espaço limitado pelo tempo de leitura de cada um e também pela paciência que só alguns fortes têm de chegar até a linha final, só posso deixar, como de praxe, alguns trechos que me tombaram. Textos em que a língua das palavras ficam para fora, como se estivessem tão eufóricas para dizer um monte de coisa que não tiveram um minuto sequer de recuperar o fôlego. 

 

 

 

 

 

 

 

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