Herberto Helder e as coisas que devem mudar

por Marcelo Ariel

 

Por que Herberto Helder preferiu a expressão ‘mudados’ ao invés de ‘traduzidos’ ?

O Bebedor Nocturno (1968), Ouolof: poemas mudados para português (1997, Poemas Ameríndios: poemas mudados para português (1997), Doze Nós Numa Corda: poemas mudados para português (1997) não respondem, mas podemos levantar um espelho ou seja, especular.  Mudar e mutar são frutos da mesma árvore. Tentemos como acontece quando estamos diante de um espelho, montar um quebra-cabeças: As frases roubadas são o início, todo pensamento é um roubo, roubar do latim é o começo, “uma inversão”.

Mutatis mutandis mudada para ‘mudar com as coisas que devem ser mudadas’. A árvore nos muda com seu fruto ininteligível? Para dentro das fronteiras da linguagem. Possivelmente. Por isso Mutar também é silenciar. “Silenciados para o português’ seria um belo enigma. A árvore no lugar do espelho, seria um perfeito Mutatis mutandis, não é mesmo? Vamos lá! A maravilhosa “doença da objetividade” produz artigos, ensaios e etc… Sigamos seus sintomas para mais tarde “nos libertarmos” antes da definitiva cura proposta pelo Daimon ou por Sócrates. Mudar as palavras do interior de uma língua para a própria língua é o começo do mundo. Estranhamento e fulgor. Você quis chegar as origens da poesia? Pergunto ao próprio Herberto, Mutatis no lugar da resposta : o silêncio em todas as línguas “faz a árvore crescer” . Somos na melhor das hipóteses os pássaros que deram errado, a nostalgia das asas gerou as magias. A Bíblia aparece como fundo desse ‘ mudar para’, HH mudou os Salmos e como Shakespeare roubou dela seu estilo, talvez ela seja a fonte geral do Marques de Sade também, como foi de Buñuel, a Bíblia é o Opus do Mutatis mutandis. Estamos voando em círculos neste artigo? Ótimo, o primeiro mergulho é no estilo bíblico e ao atravessarmos o Éden descobrimos que ele não existe, há algo melhor: Os povos ameríndios. Sem nenhuma assinatura, a amálgama das vozes da comunidade ancestral, vozes gerais, a inclusão total chamada cosmogonias. Talvez o projeto helderiano seja esse: misturar cosmogonias. “A árvore cosmogônica das origens” e também imantar a língua de linguagem. Não são a mesma coisa, sequer “são a coisa”, os poemas conversam entre si através deste Mutatis mutandis   que foi obviamente uma operação alquímica que  começou nos poemas mudados e continua “entre nós” como pensou Levinas que cito apenas para não perdermos a rima e as asas. Doze nós numa corda, o título tem uma força metafórica “quase pragmática”, é a corda nietszcheana com a qual o animal amarra o corpo em nós? Duvido, o mais provável é que cada nó seja uma língua. HH usava um dicionário “contra a gramática”, um uso paradoxal de “um não saber” leva sempre a uma revelação, estamos no território da visões, como ele mesmo anunciou. O cavalo da intuição vai mais longe do que supõe o espírito que o possui, no caso este espírito é a língua portuguesa. Um espírito que quer mudar junto com as coisas que devem mudar: uma língua em estado de apocalipse, uma língua “sem ossos” logo se vê, um espírito rebelde dorme dentro dela, que ele acorde agora!

Não há nos poemas mudados para português por HH, o demônio do cotejamento, é como se o poema fosse originalmente em português. Penso que HH selecionou os poemas que gostaria de ter escrito, logo os escreveu no processo de muda-los para  português. Neste sentido HH é o anti-Pessoa que  em vários poemas preteriu o português a favor do inglês, a vitória da infância estrangeira, gerando um ser de variações. HH em contrapartida realizou nos poemas mudados uma espécie de navegação por outros inconscientes através dos poemas, melhor dizendo: pelo próprio inconsciente através de outros poetas.

 

 

Marcelo Ariel é poeta e vive em São Paulo.

 

 

Cursos d'A Casa

[31/07/21] Bate-papo: Paraskeué e os processos de cura – com Flávio Fêo e Naine Terena

[27/07/21] Poesia marginal e periférica – com Jéssica Balbino

[27/07/21] Mergulho na História: o Lobo – com Ana Luísa Lacombe

[26/07/21] O ovo, a tartaruga e a noite: mitos de origem e o gesto criativo – com Ana Gibson e Juliana Franklin

[23/07/21] Uma leitura indígena sobre o Pensamento de Fanon – com Geni Núñez

[22/07/21] #artistaDEFpresente: novas perspectivas sobre o corpo com deficiência – com Estela Lapponi

[21/07/21] Estudos para nascer palavra – com André do Amaral

[21/07/21] Poéticas caiçaras: memórias subterrâneas e oralidade pulsante – com Janaína de Figueiredo

[19/07/21]Conversas ao pé do fogo. Viver e contar: a maravilha dos mundos – com Mara Vanessa