Da janela.Sobre Tituba.

por Maria Carolina Casati

 

Falar sobre Tituba-Condé/ Condé-Tituba-Carulina não é fácil. O livro me atravessa de tantas formas. A época em que li, tudo o que conquistei depois… são muitas as emoções.

 

Foi sobre Tituba o primeiro curso que dei pelo encruzilinhas. Ao lado da dona-do-coven, Cláudia Fusco, percebi que podia sim falar sobre obras que me impactam… e que há pessoas dispostas a conversar sobre isso! Depois disso, muita coisa boa rolou. Muitas mulheres potentes estão ao meu lado, muitos convites incríveis, inclusive o para escrever este texto!

Enquanto penso em como fazer isso, aqui em Roma, escuto a versão de Carolina (Chico Buarque) gravada por um novo amigo. Às 18h07, o sol já se pôs no inverno europeu e, para segurar a saudade de casa – na-casa-do-colonizador-que-é-tão-de-casa, é preciso invocar a presença dessas pretas e, também, apresentar um panorama da obra, que explica a importância de Maryse Condé nessa história. Vejamos.

Em 1692, a aldeia de Salem (Massachusetts – EUA) passou por eventos que até hoje não foram completamente explicados. Numa trama digna de filme de terror (principalmente para as mulheres, surprise-surprise), durante 9 meses, entre 140 e 180 pessoas (e dois cachorros) foram acusadas de bruxaria e 19 foram mortas por esse crime. Os mistérios que envolvem Salem são muitos. Entretanto, para além da resolução desse enigma, o que nos interessa aqui é analisar como a palavra, a narrativa desencadeou essa onda de assassinatos e como, também pela palavra, a história de uma de suas personagens, que já havia sido definida por discursos que justificaram outras atrocidades, é recontada e ressignificada. Um dos meus objetivos aqui é discutir como Eu, Tituba, a bruxa negra de Salem é um exemplo de escrevivência como estratégia narrativa interseccional. Eu gostaria, portanto, de discutir como essa sobreposição de narrativas – das acusadoras de Tituba e de toda a Salem (e, por extensão, dos “colonizadores”), de Arthur Miller, da própria Tituba, de Condé e outras autoras negras – traz diferentes definições de sujeito e novas significações à experiência histórica. Antes, porém, trago algumas informações que temos sobre Tituba e as demais “bruxas” de Salem nas narrativas “oficiais”.

Salem era uma aldeia isolada e, ao contrário da cidade de Salem – da qual era próxima –, não contava com estrutura ou perspectivas de desenvolvimento. O clima era hostil, o céu escuro e nublado na maior parte do ano. A imensa maioria da população era formada por puritanos que, vivendo muito próximos à natureza – a aldeia era circundada por florestas – e a povos originários, sentiam um constate medo do “selvagem diabólico”.

De fato, a questão da religião (ou o discurso religioso) é uma das peças-chaves para entendermos como as acusações de três garotas ganharam tanta força; estima-se que um puritano médio ouvisse cerca de 1500 horas de sermão ao longo de sua vida. É para esse local que Samuel Parris, um comerciante falido que se converte a pastor, se muda com a família e sua escrava, Tituba. Parris era uma figura controversa, para dizer o mínimo. Defensor de uma educação rígida – que incluía agressões físicas –, facilmente se irritava e reclamava sobre a falta de lenha em sua casa ou sobre a má vontade dos fiéis em realizar serviços manuais para sua família. Com o passar do tempo, além disso, em suas pregações falava mais do diabo do que de deus, o que fez com que, em 1690, um complô exigisse sua saída. As demandas não obtiveram sucesso, no entanto.

Não é de se admirar, então, que entre as “vítimas de bruxaria”, esteja sua filha, Betty Parris. Assim como Abigail Williams e Ann Putnam, Betty não tinha febre nem epilepsia, mas, latia, dizia que sentia beliscões, seu corpo se enrijecia ou amolecia, especialmente quando ouviam orações ou citações bíblicas. Sei…

A perseguição começa, então, quando as três garotas constroem uma narrativa baseada em experiências sobrenaturais. A princípio, as meninas acusaram outras três mulheres: Sarah Good, Sarah Osborne e Tituba. Pode-se afirmar que essas primeiras acusadas estavam à margem daquela sociedade na qual viviam. Sarah Good era uma “ameaça” à ordem social: mendiga, desbocada, assustadora, vivia arrumando encrenca com a vizinhança. Quando seu marido foi chamado ao tribunal para prestar depor, afirmou que ela “era ou iria se tornar uma bruxa em breve”. O típico macho-escroto fazendo machice. Sarah Osborne era viúva e estava envolvida em uma disputa judicial com uma das famílias mais poderosas da região, os Putnam. Assim, de certa forma, sua “saída de cena” era providencial – e desejada. Já Tituba, a negra escravizada, era, de fato, uma outsider. Estrangeira vinda de Barbados (assim dizem os registros), causava espanto e fascínio na família e nos amigos de seus senhores. Se configura como o outro em todos os aspectos: cor, “raça”, língua, origem, hábitos, costumes, religião.

Algumas obras foram produzidas acerca dos acontecimentos de Salem, mas, com certeza, a mais famosa dela é The Crucible (As Bruxas de Salem), de Arthur Miller. O dramaturgo escreve um texto com “propósitos dramáticos” e um recorte masculino, seu foco é no personagem de Samuel Parris e, Tituba, nada mais é do que uma coadjuvante exótica. Acusado (também ele) de alterar demais os acontecimentos e, também por conta de imprecisões acidentais, Miller teve que reescrever a introdução da peça.

Maryse Condé não foi a primeira mulher a escrever sobre Tituba. Em 1995, Elaine Breslaw – professora de História aposentada da Morgan State Univesity de Baltimore – publica Tituba, Relutanct witch of Salem: devilish Indians and Puritans Fantasies, no qual dá ênfase na história da bruxa negra. O livro é dividido em duas partes. Na primeira, reconstrói a vida de Tituba em Barbados e, na segunda, apresenta sua experiência no Novo Mundo.

Antes, porém, em 1964, Ann Petry, uma aclamada autora de obras adultas, tais como The Street – na qual disserta sobre a vida no Harlem e que chegou a vender mais de um milhão de cópias – e  Harriet Tubaman: conductor on the underground railroad, na qual apresenta da história da ex-escrava – lança Tituba of Salem Village, obra infantil sobre os eventos de Salem, no qual questiona o rótulo atribuído à Tituba.

O texto de Petry é mais que uma sugestão para Condé. Segundo a autora, quando procurava por uma inspiração na biblioteca da universidade na qual lecionava, foi atingida – literalmente – pela obra de Petry, que caiu de uma das prateleiras e acertou sua cabeça. Condé conta que se conectou instantaneamente com Tituba em um nível que nunca havia acontecido antes em nenhuma história. Assim, como uma reposta à publicação de Miller, ela decide publicar a própria versão da narrativa da escrava, bem como escrever um final que a agradasse. Condé, ao escrever Tituba, escreve a si mesma e (re)constrói, também, a memória de tantas outras mulheres pretas escravizadas.

Mas, assim como Maria Firmina dos Reis faz com Úrsula, Condé não escreve a si mesma diretamente: nem ela nem Firmina passaram pela experiência da escravidão. Então, como podemos falar em “escrevivência” e escrita de si em textos nos quais as autoras não falam, necessariamente “de si”? Acreditamos que em ambas as obras (e outras também publicadas por escritoras negras) a interseccionalidade se torna narrativa e faz com que, as autoras por serem elas também mulheres pretas, se tornem (quase) porta-vozes desse grupo, é a escrita de “nós” por meio da narrativa de “si”.

Eu, Tituba apresenta uma estrutura de contos de fada para contar a jornada dessa heroína (Murdock, 1990). Esse tipo de narrativa, majoritariamente feminina, versa sobre pessoas comuns que transformam o mundo de alguma forma. Para tal, após um desequilíbrio em suas vidas (no caso de Tituba, o encontro com um homem, a paixão por ele e a posterior escravização), partem em uma jornada (aqui, as viagens às quais se submete já escravizada; uma metonímia da diáspora de todos os povos que foram sequestrados em África) e, depois de vencer desafios – com a interferência de elementos mágicos – (e, no livro, de fato, ela pratica algo que pode ser encarado como bruxaria), retorna ao seu lugar de origem transformada (o que ocorre com Tituba que, ao voltar a Barbados, no pós-morte se torna lenda e legado). Antigamente, eram contadas por mulheres velhas. De fato, a própria Condé se configura como as primeiras contadoras de histórias fantásticas, as idosas que, com sabedoria e experiência, passavam valores morais às crianças em meados dos séculos XVIII e XXIX.

E, não é apenas na estrutura que a narrativa de Condé se assemelha aos contos de fada. Ela também traz os arquétipos femininos presentes na literatura. Para Marija Gimbutas (2001), os já conhecidos arquétipos femininos virgem, mãe e anciã podem ser mais bem definidos por vida – cuidadora, criadora –, morte – idosa, sabedoria – e regeneração – juventude, recomeço e inocência. É possível observar essa santíssima trindade presente no texto de Condé de duas formas, tanto na figura de Tituba com o passar dos anos, mas, também, nas personagens Abena, Man Yaya e Tituba. 

O que torna esse texto tão potente é a sobreposição de identidades narrativas que Maryse Condé utiliza para compor sua história. É a escrita do outro por meio da escrita de si quase numa interseccionalidade como método de produção textual.

Assim, se voltando à ancestralidade, exaltando exu, a encruzilhada, a filosofia iorubá, as línguas africanas e a diáspora negra, mulheres pretas passam a se narrar e produzir novos conhecimentos sobre si e os seus. Aqui, falamos para além do conceito de “lugar de fala”. Trata-se, antes, da estrangeira de dentro que é feminista e pleiteia “o lugar da mulher como sujeito político, mas ao mesmo tempo” é “uma de fora pela maneira como é vista e tratada dentro do seio do próprio movimento, a começar pelo modo pelo qual as reivindicações do movimento feminista foram feitas” (Ribeiro, 2017:47).

Falamos, portanto, de um movimento de quem tem voz, mas não é ouvida; de quem precisa se narrar para ter identidades e vivências validadas. É a mulher que se torna sujeito pela narrativa. Em Tituba, é também a narrativa que impede que seja assassinada. Ao confessar-se bruxa (ao significar-se dessa forma), por meio de relatos extremamente detalhados ela é poupada da forca.

A escre(vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e as desventuras de quem conhece uma dupla condição, que a sociedade teima em querer inferiorizada, mulher e negra” (p.6). Grada Kilomba (2019) afirma que escrever a si mesma em Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano, é uma “forma de transformar”, uma vez que não é mais a “Outra”, mas sim, ela própria. Ela deixa de ser objeto para se o tornar sujeito (p.27). Essa é a argumentação que gostaria de fazer aqui: por meio da escrita de si (que, por vezes, é do outro), a mulher negra se constitui enquanto sujeito; ao se narrar, ela se define a si. É resistir, (sobre)viver pela palavra. É escre(vivência). E Carulina? Carulina continua na janela, vendo o mundo passar, construindo histórias sobre ele, sobre ela…

 

 

 

 

Maria Carolina é professora e escritora. Leitora voraz, apaixonada pela palavra, se dedica a pesquisas usando a metodologia da história oral. É idealizadora do @encruzilinhas, um projeto de leitura e debate de textos sobre negritude, gênero, feminismos e militância. É pesquisadora do GEPHOM – EACH-USP e doutoranda da EACH-USP, no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política, no qual, financiada pela CAPES, desenvolve pesquisa com brasileiras negras casadas com italianos.

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