Encantamento, Ancestralidade e Memória: Afetar ou ser afetada pelas narrativas da literatura infanto-juvenil “O Cabelo de Cora''?

por Danielle Ramos

 

Antes mesmo de contar a vocês sobre meu encantamento com o livro O Cabelo de Cora de Ana Zarco Câmara, com ilustração de Taline Schubach, irei falar a respeito da minha relação com os livros e de como esta construção de afeto foi elaborada.

Iniciarei com três palavras que teceram as tramas da minha vida seja no âmbito profissional ou emocional: a memória , o afeto e a identidade são palavras que me atravessam desde a tenra idade. Um exemplo prático foi quando a primeira lição de afetividade veio bater em minha porta. Meu querido avô paterno Zeli, que adorava contar histórias, em uma bela tarde ao retornar do trabalho, trouxe um livro dos contos infantis, mais conhecidos daquela geração. Encantei-me com o objeto  livro e com a história do gato de botas. A imagem daquele gato de olhar matreiro que respirava liberdade, fez com que pensasse: como pode um ser humano ser capaz de criar imagens como estas, usando apenas o papel e a imaginação? Veio o sonho de imediato, quando crescer quero ser como essa pessoa, criar imagens para impactar o olhar e a alma humana. Abriram-se portais do meu imaginário que reverberam até hoje.

Fui uma criança inquieta, adorava ler, lia temas diversos, amava as histórias de Monteiro Lobato. Os livros que tive acesso no período escolar éramos representados – nós negros – por escravos e não como reis e rainhas. Foi somente em algumas histórias em quadrinhos, que me senti representada. Era fascinada pelo Pantera Negra e já na adolescência tive acesso aos X-Men. Minha personagem favorita era Ororo ou Tempestade como era mais conhecida, personagem forte e potente, era capaz de mover e modificar o tempo.

Na temporalidade da vida, tornei-me arte educadora e pesquisadora. Nesta fase de minha existência procurei abarcar minhas experiências, adicionei pitadas generosas de afeto, empatia e com as memórias resgatadas pude ofertar aos meus alunos o repertório literário e imagético através de obras que nos transportaram aos saberes ancestrais, ao respeito à diversidade e ao desejo de pertencimento a este mundo tão desigual. Estou a falar do livro O Cabelo de Cora, que é  uma narrativa pautada em uma realidade escolar, muito próximo do que vivenciamos em nossa rotina de profissional, não existe princesa e nem príncipes, e sim o empoderamento da menina negra que teve sua aparência colocada em voga pelos colegas de turma. O interessante desta narrativa é nos provocar a reflexão, entender o que é ser diferente e a importância da construção da estética onde existem diversas formas de belezas, e que a construção da identidade se dá através do reconhecimento de suas raízes ancestrais sempre colocada de maneira afetuosa.

 

 

Cora é uma menina de cabelos crespos. Ela se angustia com o padrão de beleza imposta pelo grupo social na qual está inserida, contudo vai em busca de  respostas para suas questões. A narrativa floresce de forma precisa e ritmada, como se fosse música para os nossos ouvidos. Neste momento temos o afeto expresso em um longo abraço entre Cora e sua tia Vilma que a conforta com falas de ternura e reconhecimento de sua identidade, da beleza de sua negritude representada pelas madeixas crespas e volumosas, assim como de sua avó africana chamada Ana. Cora se sente acolhida e desta forma compreende o seu lugar no mundo.

A ilustração é feita com muito cuidado, traz uma estética delicada e generosa.A ilustradora destaca as personagens com cores quentes que contrasta às vezes com fundo em tons pastéis ou neutros. Destaque para o texto que compõe a ilustração.

O mais interessante desta obra é o grau de realismo do conflito apresentado ali, quantas meninas negras já passaram por situações como estas? Como o professor dará conta deste tema que muitas das vezes é negligenciado nos bancos escolares?

Como mulher negra e  educadora que já foi criança, se tivéssemos uma diversidade de literaturas que tratasse deste tema, talvez amenizasse tantos desconfortos vividos em minha infância por conta de quem eu sou. E provavelmente de muitas meninas negras de minha geração.

O livro O Cabelo de Cora fala muito sobre mim, ele me afeta e leva para um lugar de muita reflexão. E através dele pude abordar com minhas alunas sobre a beleza que vai para além do campo da imagem, ela está expressa na essência e na raiz de cada um e quando amamos quem somos, provavelmente nos tornamos pessoas felizes e conscientes de que a beleza está presente na plenitude  de  sua existência.

 

 

Livro: O Cabelo de Cora

Escritora: Ana Zarco Câmara

Ilustradora: Taline Schubach

Editora: Pallas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Danielle Ramos

Arte educadora formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, artista e pesquisadora, amante dos livros , principalmente os de imagens. Apaixonada pela natureza em particular os pássaros. Adora conectar-se com o campo das energias sutis, interessa-se por temas como a educação, arte e comunicação. É um ser humano encantado pela pintura e pelo desenho. Já realizou algumas exposições individuais e coletivas. Em fevereiro deste ano, foi selecionada para participar da residência artística do Lab Corpo Palavra. Instagram: @ramodaniele 

 

 

Cursos d'A Casa

[31/07/21] Bate-papo: Paraskeué e os processos de cura – com Flávio Fêo e Naine Terena

[27/07/21] Poesia marginal e periférica – com Jéssica Balbino

[27/07/21] Mergulho na História: o Lobo – com Ana Luísa Lacombe

[26/07/21] O ovo, a tartaruga e a noite: mitos de origem e o gesto criativo – com Ana Gibson e Juliana Franklin

[23/07/21] Uma leitura indígena sobre o Pensamento de Fanon – com Geni Núñez

[22/07/21] #artistaDEFpresente: novas perspectivas sobre o corpo com deficiência – com Estela Lapponi

[21/07/21] Estudos para nascer palavra – com André do Amaral

[21/07/21] Poéticas caiçaras: memórias subterrâneas e oralidade pulsante – com Janaína de Figueiredo

[19/07/21]Conversas ao pé do fogo. Viver e contar: a maravilha dos mundos – com Mara Vanessa