Entre o Òrun e o Àiyé

 

por Rodrigo Dida

 

 

Desde pequeno, por ser uma criança negra e tímida, sempre fui mais próximo dos livros do que dos meus colegas de escola. O problema em si não era a relação com eles. Eu tinha bons colegas, mas o que eu gostava mesmo era de ler livros na biblioteca, principalmente os ilustrados. 

 

Ainda nos primeiros anos do Ensino Fundamental, lembro da pequena biblioteca da escola pública em que estudei e guardo com carinho a recordação de uma antiga coleção, chamada “Tesouro da Juventude”. Pelo que pude pesquisar, era como uma enciclopédia infanto-juvenil que tratava de diversos assuntos. Ao abrir essas edições, era revelada a ilustração de um casal de crianças em um tapete voador, vislumbrando uma ilha  com vários dos grandes monumentos do mundo. Com esse gesto, eu era capaz de adentrar um novo mundo formado por fábulas e histórias mitológicas. Tenho uma lembrança muito viva de um conto nórdico sobre Balder o bravo, do detalhe de como ele era o homem mais amado por todas as coisas vivas, até o traço fino e delicado da ilustração que lembrava o trabalho de Gustave Doré.

 

Elenco todas essas lembranças para mostrar o quanto é forte o poder de arquétipos e mitos, que, no caso, permanecem vívidos em mim até hoje, mesmo após a passagem de tantos anos. Apesar da alegria que essas lembranças me trazem, elas são acompanhadas pelo dissabor de uma dúvida que se manifesta de várias formas, mas que sempre teve o mesmo cerne: “afinal, onde estão as representações de pessoas negras e suas mitologias?”. 

 

Por isso, ilustrar “Do Òrun ao Àiyé – A criação do mundo” tem muitos  significados pra mim, são camadas de sentimentos e lembranças que existem sob cada desenho. Um desses significados é esse retorno à infância, lugar onde posso levar para aquele garoto negro um itan (ou “história” em Iorubá), no qual ele finalmente poderá se identificar imageticamente. 

 

 

Outro significado importante foi a oportunidade de ilustrar um texto da Waldete Tristão, que conheci por meio da obra “Conhecendo os Orixás: De Exu a Oxalá”. Quando vi a capa desse livro, sonhei ilustrar um livro dela e guardei essa vontade lá na minha caixinha de desejos – inclusive, acredito que ela vai descobrir a sua importância para mim enquanto estiver lendo este texto. Nesse sonho, eu jamais conseguiria dimensionar o quão fantástico poderia ser esse processo. A troca de conhecimentos e visões foi tão agregadora quanto formadora, nos conduzindo a uma imersão fantástica pela cosmo-percepção africana. 

 

Outro ponto crucial deste processo foi a relação com a Luciana Soares, editora da Aziza. Ela nos capitaneou com maestria por essa história, desde o momento em que nos deu liberdade para realizar as importantes e necessárias discussões para garantir o desenrolar desse processo, quanto para reunir todas as nossas visões e participar conosco dessas decisões, acrescentando ainda mais à obra.

 

Falando um pouco do resultado de toda essa parceria, o livro aborda a criação do mundo pela perspectiva da mitologia Ioruba. Isso faz com que a obra traga uma visão de desconstrução ocidental e afrocentrada, buscando construir novas possibilidades visuais e textuais mais lúdicas para as crianças, nesse caminho que as leva ao encontro com os Orixás.

 

 

Entendo também que falar do nosso livro é celebrar a ancestralidade que busca sempre formas de nos unir. A magia do encontro com essas duas mulheres, que são verdadeiras potências, e a esperança no poder da imaginação que essa semente vai produzir para as crianças no futuro. 

 

Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

Rodrigo Dida

Seguindo a paixão por bibliotecas e livros com ilustrações, quando pequeno, estudei Artes Gráficas no SENAI, e me especializei em desenvolvimento para web e hoje trabalho na área da educação digital, com desenvolvimento de conteúdo multimídia e animações. Busco formas criativas de abordar o lúdico e a diversidade, em todos os sentidos, e isso é uma constante em meus desenhos. O espírito do menino negro das bibliotecas, cheio de imagens na cabeça, está sempre em tudo que faço.

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