Prosa poética aconchegada pelo poema O Leitor, de Rainer Maria Rilke

 

por Leticia Liesenfeld e Liliana Pardini

 

Oi Lili,

Relendo o maravilhoso Pedagogia Profana do Jorge Larrosa, reencontrei um poema do Rilke que tive vontade de  trazer para a nossa próxima aula de alemão. Pelo que percebi, na edição brasileira, foi traduzido diretamente do espanhol, então podemos olhar para o original e conversar sobre ele. O poema é lindo, você vai amar! Chama-se Der Leser (O Leitor).

O Leitor

Rainer Maria Rilke

* versão/tradução Leticia Liesenfeld

 

Quem o conhece, a este que desvia o seu rosto de um estado de ser para um segundo

Que somente o folhear rápido das páginas por vezes violentamente interrompe?

Mesmo a sua mãe não estaria certa se é mesmo ele que ali lê embebido em sua sombra

E nós, que tínhamos as horas, o que sabemos nós sobre o quanto dele se desvaneceu

Até ele erguer com esforço o olhar: carregando consigo tudo o que no livro se passava, com olhos que, ao invés de tomarem para si, generosos se debatem de encontro a um mundo pronto e completo

Como crianças silenciosas que brincando sozinhas experienciam de repente o existir

Mas as linhas do seu rosto, antes organizadas, ficaram para sempre alteradas

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Em 22 de jul de 2021, à(s) 16:59, Leticia Liesenfeld <[email protected]> escreveu:

 

Querida amiga,

 

Falamos de reações corporais ligadas à leitura já há algum tempo… Mas o fato é que fomos atravessadas recentemente por este poema e essa questão ganhou uma outra dimensão.

Fiz um curso de Butoh, uma dança japonesa, e durante o curso havia este exercício de andar numa linha reta lentamente e no percurso deixar aos poucos que um rosto nascesse em nós.

 

O rosto que deveria surgir aos poucos era o nosso e ao mesmo tempo não era. Era mais do que o nosso rosto de agora, era um processo de deixar emergir aos poucos em nós o rosto dos nossos antepassados. Foi uma experiência muito forte.

 

Há momentos em que um choque de realidade mobiliza todo o nosso corpo e desfaz de repente aquele rosto com o qual estamos acostumadas, algo irrompe desde dentro. Uma expressão nova toma conta, mais perto de nós do que supúnhamos e ao mesmo tempo nos surpreende trazendo um estranhamento. Parece vir de longe, ao mesmo tempo parece ter estado sempre lá. Como no exercício do Butoh, por algum movimento de abertura, deixamos este rosto passar pelos poros antes obstruídos da nossa pele e chegar finalmente. É preciso aproveitar estes momentos raros, de profundo desnudamento.

 

O livro enquanto viagem nos modifica muitas vezes desta forma, é o que o poema me leva a pensar. Imagens e sensações cravadas em nós, tingindo tudo à volta por um bom tempo. Como as sensações de um sonho que por vezes nos acompanham até a metade do dia seguinte, alterando de modo sutil todo o caminhar pela nossa vida “conhecida” de antes.

 

Espero que o que escrevi aqui inspire você a prosseguir com a nossa conversa…

 

Beijos,

Leticia (vacinada hoje com segunda dose, esperançosa portanto neste ano estelar pandêmico de 2021)

 

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 Liliana Pardini – Gmail <[email protected]> escreveu no dia quinta, 22/07/2021 à(s) 18:17:

Amiga Querida,

Não acredito no aprisionamento do sutil em instituições, mas acredito na religação que a arte proporciona como experiência.

Sinto que isso que o poeta descreve seja uma iluminação, o momento em que se toca naquilo que é.

É tão simples e sem trombetas tocando, apenas uma sensação no corpo, um arrepio na nuca, uma alteração do rosto.

Simples e raro. O desnudamento que precisa ser aproveitado.

Como você disse sobre o rosto que vem de eras anteriores, a sensação vem de reconhecer algo que estava lá no fundo, e que havia sido esquecido.

Dou voltas em torno da palavra “desvaneceu”. Me encanta. Como se o que o leitor colhe do texto não seja para que ele acumule em si, mas o faz desvanecer no tecido do texto. Não tem como não lembrar desse trecho do O Prazer do Texto, do Barthes:

“ Texto quer dizer tecido; mas, enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido — nessa textura — o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia.”

Outro ponto que me faz alterar as linhas do rosto são os “olhos generosos”. Descobri ontem que generosidade vem de gens, que é gerar, fazer nascer. E aqui está o início da criação: quando um leitor se sente tão afetado pelo que leu, que acontece o impulso de gerar, generoso, para expressar aquilo que sentiu. Mesmo que o mundo já esteja pronto e completo, ele cria a possibilidade de gerar esse momento naquele que tiver contato com a sua obra.

O que acha?

Um grande beijo,

Lili

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Em 23 de jul de 2021, à(s) 11:31, Leticia Liesenfeld <[email protected]> escreveu:

Oi Lili, Lírio!

Fiquei pensando no que você fala sobre o desvanecer… é interessante mesmo. Importante essa ideia de que algo se esvai, se gasta, se perde, sem que isso tenha uma conotação negativa. Pelo contrário, podem ser os sinais da viagem, vestígios que ficam pelo caminho, que são o caminho, agora que passamos por ele. 

A imagem de estar “embebido em sua sombra” também me chama a atenção. Me remete à uma densidade não estática, movente, como a chama de uma vela. A sombra traz para mim esta semelhança com a chama, do jeito que se move à nossa volta ao longo do dia. Uma inteireza sutil, trêmula, mas intensa.

O “pronto” do mundo machuca. Tantas vezes ele se mostra para os artistas e poetas como impenetrável, sem fissura aparente e na verdade encobre enormes rachaduras internas. Mas se lemos e içamos as velas para uma viagem é também por estas fissuras que nos aventuramos, e esta nossa passagem altera as feições deste mesmo mundo, estou certa disso.

Muito agradecida por esta prosa poética, assim, aconchegadas pelo poema…

Beijos,

Leticia 

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Liliana Pardini – Gmail <[email protected]> escreveu no dia sexta, 23/07/2021 à(s) 12:42:

Oi Amada,

Ainda sobre o desvanecer, gostei muito do que você falou sobre os vestígios. Mais do que o texto passar a fazer parte dele, ele passa a fazer parte do texto. E se, ainda que com esse mundo externo fechado, ele se aventurar a expor os vestígios dos efeitos que o texto lhe causou, traça assim um caminho para quem busca.

Esse assunto da sombra também dá muito tecido para esta roupa. Estar “embebido da sua sombra”, estar nessa “inteireza sutil”. Não tenho muitos estudos da área psi além do que farejou a minha curiosidade, mas sinto aqui uma referência mesmo à nossa sombra interna, aquilo que fingimos não existir, essa porção nossa que nem mesmo nossa mãe reconheceria. E ele lê embebido dela, mergulhado nela, distraído de ter que manter uma persona para o exterior, lê estando inteiro. E no espelho do texto é capaz de reconhecer sua sombra, trazê-la para mais perto, sentir sua própria inteireza sutil.

Tão bom ter você para falar livremente sobre o que esse poema me provoca. Tão precioso ter perto uma amizade onde a máscara pode ser descartada.

Beijos, amiga

Passo o novelo e as agulhas para você, bom fim de semana

Lili

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