Krenak: "A vida é uma dança cósmica"

 

por Renata Penzani

 

Krenak: “A vida está em mim, não fora”

 

Livros são criaturas que podem fazer de tudo. Uns emocionam, outros divertem, alguns ensinam, muitos assombram. Poucos afetam nossa química. Como se um big bang particular acontecesse dentro da nossa cabeça, uma mini supernova explodisse em milhares de luzes, e ganhássemos uma fresta de infinitude para ver a vida de um outro lugar; um lugar de onde não conseguimos mais desver – nem se quiséssemos. É química! Altera os hormônios, os sentidos, a neurobiologia do corpo e da mente. Parece um transe. Talvez eu exagere aqui (certamente exagero, sempre). Mas a sensação foi essa, depois de ler “Radicalmente vivos, de Ailton Krenak.

 

Esse texto foi transformado em publicação pela comunidade olugar. Saiu com tiragem limitada, sem editora, com o objetivo específico de guardar uma fala preciosa que de outra forma se perderia por aí. Por isso, não é um livro que esteja disponível em livrarias ou lojas online, o que só torna o gesto de falar dele uma ainda mais necessária. Não é um livro bonito, poético, inspirador. Embora seja seja tudo isso. É um livro urgente. Diz o que precisamos escutar e até agora não escutamos, o grito ancestral dos povos originários que já estão cansados de saber de tudo e assistir o resto das pessoas fazendo tudo errado.

 

Em suas únicas 63 páginas, o xamã, professor, comendador, ativista, escritor e cosmovisionário Ailton Krenak deixa o mapa e a matéria-prima necessária para transformarmos todas as coisas. Tem ali o suficiente para tudo que precisa ser mudado. O problema é que não estamos dispostos a abrir mão da “vida utilitária”. “A vida não é útil”, ele diz. Essa frase inclusive é o título de outro livro seu, publicado pela Companhia das Letras.

 

Pensar no que isso quer dizer é pensar sobre muita coisa. Muita coisa. No meu caso, enquanto lia o livro, pensei no filme “Soul”, da Pixar (que finalmente pude assistir e girou minha cabeça 32 vezes), no “Poema aos homens do nosso tempo¹, de Hilda Hilst, na ideia de “tempo roubado”, do Daniel Pennac. Uma eclosão de sinapses violentas e coloridas acontecendo por dentro da minha mente discursiva. No poema “O homem; as viagens², do Drummond, no texto “Isto é água”, do David Foster Wallace. 

 

Na orelha do livro, o Lama Padma Samten, fundador do CEBB (Centro de Estudos Budistas Bodisatva), diz que “Krenak apresenta a mente búdica da lucidez que vê desde lugares sutis e provoca questões profundas”. A síntese parece perfeita. Difícil dizer qualquer coisa “sobre” o que ele diz, e não exatamente “o que” ele diz. Então, eu me retiro e faço o que cabe aqui: compartilhar. Os trechos abaixo perdem parte da sua potência por estarem deslocados do contexto do livro, mas os divido com o desejo de que afete mais alguém como afetou a mim. Supernovas inventados, big bangs sensoriais, “paraquedas coloridos”, como diria Ailton Krenak. De qualquer coisa precisa vir a mudança.

 

“A vida não tem utilidade nenhuma. A vida não é para ser útil. Isso é uma besteira. A vida é tão maravilhosa que nossa mente tenta dar uma utilidade para ela. A vida é fruição. A vida é uma dança. Só que ela é uma dança cósmica. E queremos reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária. Queremos reduzi-la a uma biografia: alguém nasceu, fez isso, fez aquilo, fundou uma cidade, inventou o fordismo, fez a revolução, fez um foguete, foi para o espaço. Tudo isso é uma historinha tão ridícula. A vida é muito mais do que tudo isso. Nós temos de ter coragem de ser radicalmente vivos. E não negociar uma sobrevivência.”

 

“Se, por um lado, nós estamos sendo desafiados por essa espécie de erosão da vida, quando nós pensamos que os seres, ao mesmo tempo, sendo atravessados por isso que seria a modernidade, a atualização constante de novas tecnologias, eles estão sendo consumidos. Uma ideia que me ocorre é que, a cada passo que nós damos nisso que foi entendido como progresso tecnológico, nós imediatamente devoramos alguma coisa por onde passamos.”

 

“Quando nós falamos em fim do mundo, alguém pode dizer: “Ah, mas isso é muito apocalíptico, ele é um profeta do apocalipse apavorando a gente!”. Não sou um profeta do apocalipse; na verdade, estou dando notícias antigas. Nós estamos, devagarzinho, desaparecendo com mundos que os nossos ancestrais cultivaram sem todo esse aparato que nós achamos essencial para continuar vivendo. Se nós propusermos a alguém de 20, 30 anos, colocar em questão todo esse aparato que chamam de progresso, podem falar: “ah, mas agora que eu tô com 20, 30 anos, você vem me dizer que acabou a festa? O século XX inteiro predou tudo, comeu tudo, e agora eu cheguei meio no fim da festa, isso é muito chato, eu quero continuar. Me parece que existe um desejo nas novas gerações de que essa condição de consumo da vida no planeta se estenda por mais um tempo, sem ter que desligar, digamos assim, a máquina de fazer coisas, a máquina da mercadoria.”

 

A vida nos atravessa. “Parece que quem vive na cidade não experimenta isso com muita frequência, porque a cidade é tão artificial que tudo parece que tem uma existência automática. Você estende a mão e tem um pão, tem uma padaria, uma farmácia, um supermercado, uma drogaria… Na floresta, não tem essa substituição da vida – ela fui, e, no fluxo da vida, você sente mais sua pressão. Experimentar a pressão da vida talvez fosse a experiência para substituir a natureza. Isso que a cultura chama de natureza deveria ser uma fricção do nosso corpo com a vida, em que soubéssemos de onde vem o que eu como, o que vem no ar que eu respiro, para onde vai o ar que eu expiro. Essa consciência de estar vivo deveria nos atravessar de uma maneira em que a vida não fosse uma coisa fora de nós, em que a pessoa sentisse de verdade: a vida está em mim, não fora!”.

 

“Alguns, informados por sua tradição, acham que nós estamos aqui no mundo para aproveitar ao máximo a experiência sensorial: comer, beber, dançar, brincar, curtir, conviver, experimentar. Então, a vida seria uma grande experimentação sensorial. (…) Mas algumas tradições entendem que esse pular, dançar, comer, brincar é só uma parte, e que nós também estamos fazendo uma experiência transcendente, que não somos só cabeça, tronco, e membros, que nós temos espírito, alma, alguma coisa além desse material que junta pele, osso, água. E que essa experiência para além do corpo é mais interessante do que só a experiência física.”

 

“É maravilhoso como nós somos capazes de imaginar qualquer coisa. Às vezes, não conseguimos verbalizar, mas imaginar é sem limite. Nós imaginamos tudo. Somos capazes de imaginar qualquer coisa para além do nosso entorno. A experiência da meditação pode ajudar cada um de nós a reconhecer esse fluxo que atravessa o nosso corpo, a nossa mente, e buscar onde nos sintamos um pouco mais esclarecidos e menos egoístas. Porque se nós elegemos um ponto de vista, achamos que ele é suficiente, e que o mundo tem que se alinhar a ele (“ou o mundo olha da mesma perspectiva que eu eu, ou ele não me interessa”), e isso é muito egoísmo.”

 

“Tem gente que fica muito confortável se contorcendo na ioga, ralando no caminho de Santiago ou rolando no Himalaia, achando que com isso está se elevando. Na verdade, o que ele está fazendo é só uma fricção com a paisagem, não vai fazer ninguém sair do ponto morto. Então, é uma provocação acerca do egoísmo. Eu não vou me salvar sozinho de nada. Estamos todos enrascados. E eu acho que seria irresponsável ficar dizendo para as pessoas que se nós economizarmos água, ou se só comermos orgânicos e andarmos de bicicleta, nós vamos diminuir a velocidade com que estamos comendo o mundo.”

 

“Esse caráter temporário da nossa ‘acampagem’ aqui na Terra supõe que nós podemos decolar daqui para outro lugar.  Essa experiência de consumir o mundo porque há outros possíveis é um autoengano. Não tem outros possíveis. A nossa experiência como seres que tiveram origem aqui no planeta Terra, essa experiência que nos constitui de 70% de água e de outros materiais que constituem nosso corpo só dá para fazer aqui na Terra.”

 

“Nós estamos, na nossa relação com a vida, como um peixinho em um imenso oceano. Àquele pequeno peixinho num imenso oceano, pela sua maravilhosa fruição, nunca vai ocorrer que o oceano tem que ser útil. Porque o oceano é a vida.”

 

“Nós estamos aqui para fruir a vida, experimentar a vida. E quanto mais consciência despertarmos sobre a vida, mais a experimentamos. Mas aí é vida mesmo, e não autoenganação. Se você precisa sair correndo para um culto, para um ashram, para uma mesquita ou para um terreiro para ficar em paz, preste atenção.”

 

“Naqueles lugares onde as pessoas, os coletivos, sofreram alguma abordagem forte do sentido utilitário da vida, foi prejudicada também a relação com o silêncio. Quando o Tibete foi invadido, e o povo teve que fugir para outros lugares do mundo, essa seria uma imagem bem próxima disso que estou falando com vocês, de um povo originário que, durante muitas gerações, talvez milênios, experimentou um estado de atenção e alerta que criava esse silêncio interior e que permitia a fruição da vida. Eles sofreram um atropelamento, foram jogados no meio dessa bagunça do mundo todo, e vão ter que usar essa experiência, exercitar essa experiência, para não ficarem totalmente capturados por essa coisa que estamos denunciando hoje, que é essa espécie de erosão da vida e do barulho, onde esse silêncio interior fica o tempo inteiro sendo assaltado por urgências que parecem estar acontecendo ao nosso redor. Parecem.”

 

“Os Krenak decidiram que nós estamos dentro do desastre. Não precisa ninguém ir lá e nos tirar. Nós vamos atravessar o deserto. Tem que atravessar deserto, uai! Toda vez que você vir um deserto, vai sair correndo? Quando aparecer um deserto, atravessa ele.”

 

 

Poema aos homens do nosso tempo

 

 Enquanto faço o verso, tu decerto vives

Trabalha tua riqueza, e eu trabalho o sangue

Dirás que sangue é não teres o teu ouro

E o poeta diz: compra o teu tempo

Contempla o teu viver que corre, escuta o teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo

 

Hilda Hilst, em “Júbilo, memória, noviciado da paixão” (1974)

 

 

O homem; as viagens

 

O homem, bicho da Terra tão pequeno

chateia-se na Terra

lugar de muita miséria e pouca diversão,

faz um foguete, uma cápsula, um módulo

toca para a Lua

desce cauteloso na Lua

pisa na Lua

planta bandeirola na Lua

experimenta a Lua

coloniza a Lua

civiliza a Lua

humaniza a Lua.

 

Lua humanizada: tão igual à Terra.

O homem chateia-se na Lua.

Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.

Elas obedecem, o homem desce em Marte

pisa em Marte

experimenta

coloniza

civiliza

humaniza Marte com engenho e arte.

 

Marte humanizado, que lugar quadrado.

Vamos a outra parte?

Claro — diz o engenho

sofisticado e dócil.

Vamos a Vênus.

O homem põe o pé em Vênus,

vê o visto — é isto?

 

idem

idem

idem.

 

O homem funde a cuca se não for a Júpiter

proclamar justiça junto com injustiça

repetir a fossa

repetir o inquieto

repetitório.

 

Outros planetas restam para outras colônias.

O espaço todo vira Terra-a-terra.

O homem chega ao Sol ou dá uma volta

só para tever?

Não-vê que ele inventa

roupa insiderável de viver no Sol.

Põe o pé e:

mas que chato é o Sol, falso touro

espanhol domado.

 

Restam outros sistemas fora

do solar a colonizar.

Ao acabarem todos

só resta ao homem

(estará equipado?)

a dificílima dangerosíssima viagem

de si a si mesmo:

pôr o pé no chão

do seu coração

experimentar

colonizar

civilizar

humanizar

o homem

descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas

a perene, insuspeitada alegria

de con-viver.

 

Carlos Drummond de Andrade, em “As impurezas do branco” (1973)

 

 

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