viés, por Jonas Samudio

 

por Jonas Samudio

ela começa assim

          se agulha não é lápis
          escrever é escrever
          costurar é costurar?

ao seu lado, sobre a mesa, alguns nomes, as peças
que costura, a escrita a que se dedica, um aumento
de vazio, tecido que se esgarça até o viés, até esse
júbilo

          escrever, costurar
          fazer, um corpo

continua lendo

          a literatura trapaceia, desmonta a cadeia
          discursiva e, cadeia, sabemos, significa
          outras coisas além de corrente e elos; pode
          ser cativeiro, opressão, grilhão; e também
          um livro pode deixar que essas correntes se
          insinuem por suas páginas
          ela pode desmontar, ou ao menos revelar, a
          estrutura de interdições de que a linguagem
          é feita – afinal, dizer isto é dizer isto desta
          maneira, nesta dada ordem, nesta sequência,
          nesta cadeia

sublinha, quer sair da palavra cadeia, quer entrar
noutro espaço, o dos limiares oblíquos
relê, alterando os nomes

          a costura trapaceia, desmonta a cadeia
          discursiva e, cadeia, sabemos, significa
          outras coisas além de corrente e elos; pode
          ser cativeiro, opressão, grilhão; e também
          um vestido pode deixar que essas correntes
          se insinuem por seus tecidos
          ela pode desmontar, ou ao menos revelar, a
          estrutura de interdições de que a linguagem
          é feita – afinal, costurar isto é costurar isto
          neste molde, nesta dada ordem, nesta
          sequência, nesta cadeia

escreve cadente, altera para chegar ao limiar em
que escrita é costura, e isso é tudo: furar, cortar,
juntar os pedaços da língua

traçar a linha do lado de fora

desfazer o molde, abrir as maneiras, não apagar os
rastros, esgarçar mais, deixar à mostra os fios que
faziam a antiga trama, fios soltos, pausas e
recortes, o que sempre desejou, a visão das
imagens diagonais

e, tomando o novo aviamento entre as mãos, o
aproxima e evoca

          viés
          corte oblíquo em tecido extenso

coloca-o de lado, fecha os olhos, e, com decisão
súbita, agulha e lápis entram na mão

          mão chagada de onde verte a linha,
          secreção, uma escritura santa do próprio
          corpo, reiterada e prometida, ainda que custe
          o esgotamento, sou tua devota
          a escrita, a costura estão antes e se
          prolongam além da mão

reza, é tamanha a dor, é tal delícia, que só o
vestido resta vestido, e continua

          sobre a relva, um infinito véu recobria tudo,
          e o som do vento ali era o frufru
          do vestido vestindo o mundo
          maior que o mundo
          maior que os montículos de grama, os vales
          ardentes
          maior que a alma, coisa breve que roça
          maior que tudo

e, sobre as mãos amenas, escrita e costura lançam
o fino viés
do júbilo

                                                  07 de abril de 2021
memória da beata Maria Assunta, o santo perfume

 

Jonas Samudio estará n’A Casa Nuvem no próximo dia 20, com o curso: Escrever, Costurar, Vestir: https://acasatombada.amarelinha.cc/20-04-21-escrever-costurar-vestir-com-jonas-samudio/

 

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