Alguém que ressuscite, por Ângela Castelo Branco

por Ângela Castelo Branco

 

Metamorfose

 

Quando a mulher

se transformou cabra

marés anuíram

ao ciclo recente

das águas

ah

as bombas

desceram em paraquedas

antes dos homens

 

Esta é a revolta

a metamorfose

onde

equinócios mecânicos

abortam os filhos

 

Cabra só cabra

espeta

nas penas dos pagens

os cornos alucinantes

como para ergueres dos mortos

a necessidade

antes

 

A mulher se transformou cabra

ritual de emigração

em resposta à raiz

constante das árvores

ao grande silêncio empastado nas letras de imprensa

 

Foi quando a mulher

se fez cabra

no compasso de fúria

contra a batuta

dos chefes de orquestra

que escorrem notas

dos gritos da música

 

Fez-se cabra

desatenta de origens

cabra com fardo de cio

no peso das tetas

cabra bem cabra

adoçando a fome

na flor dos cardos

 

(Quando a cabra

voltar mulher —

—ressurreição)

 

Luiza Neto Jorge, Poesia, Assírio Alvim

 

__

 

Sim – digo-te, pousando as mãos nos teus joelhos – desejo encontrar alguém que me ame com bondade, e saiba ler.

– Alguém que queira ressuscitar para ti?

– Sim, alguém que tenha para comigo essa memória. Alguém que deixe espaços entre as palavras para evitar que a última se agarre à próxima que vou escrever. Alguém que admita que a cartografia dos animais e da pontuação não está ainda estabelecida. Alguém que eu possa ler diferentemente depois de me ler. Alguém que dirá aos animais e às plantas que nem sempre serão servos. Alguém que ao nos amarmos se reconheça de matéria estelar. (Llansol, O Jogo da Liberdade da Alma. Relógio D’Água)

 

 

Repito. É preciso repeti-lo muito. O trabalho de uma mulher, desde que se levanta até a hora que vai pra cama, é tão pesado quanto um dia de guerra, pios que a jornada de trabalho de um homem, porque ela, ela precisa inventar seu emprego do tempo de acordo com o emprego do tempo das outras pessoas, das pessoas de sua família e das pessoas das instituições externas.  (Marguerite Duras, A vida material p. 46)

 

tenho três fragmentos. escuto o eco de grito de uma cabra vindo de meu ouvido esquerdo.

escuto-a insistentemente todas as manhãs. estou acordada. sei que sonhei, sei que sonho.

que diferença faz. os dias explodiram. é preciso contar isso.

é preciso contar que esse corpo de corpos em corpos,

anda a dançar no cemitério das imagens a ele destinadas

veleja, navega, nada, mergulha, faz apneia

em torno das pernas inchadas

em torno do menor movimento

em torno dos animais da linguagem

em torno da existência que não se tem

mas que é parte

esse corpo acredita nisso:

a vida é alguém

que te ressuscita

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