por Renata Penzani
“Se alguém pudesse nos olhar do alto, veria que o mundo está repleto de pessoas apressadas, suadas e exaustas. E também veria suas almas, atrasadas e perdidas pelo caminho”.
Esse é o recado que o livro ” A alma perdida “, da escritora polonesa Olga Tokarczuk, parece ter vindo nos dar. O lançamento é da Editora Todavia. Ela que ganhou o Prêmio Nobel e é uma das vozes mais ressonantes da literatura contemporânea, aventura-se a mostrar, dentro de um livro “infantil” onde estão os vazios que nos habitam, dentro e fora da histórias. Como diria o escritor Clive Staples Lewis em uma citação que li essa semana (se alguém tiver a referência, me passa?), “uma história infantil que só pode ser apreciada por crianças não é uma boa história infantil”. Nesse sentido, então, esse livro é uma ótima “história infantil”, afinal, ele faz perguntas que ninguém consegue responder em definitivo.
O que é alma, por exemplo? Se ela é algo que pode se perder, então existe? Para o budismo, a rigor, alma não existe, é apenas uma manifestação do desejo de permanência do ser humano. Já para a tradição judaico-crista, a alma se traduz no divino individual.
Na etimologia da palavra, alma deriva do latim “animu”, aquilo que “anima a vida”. Seja qual for a noção que te orienta, vale a mesma interrogação: em que momento corpo e alma coincidem? Que situações permitem que eles se alcancem mutuamente? Neste mundo que nos quer cada vez mais fragmentados, onde conseguimos cola para sermos inteiros?
O livro de Olga não diz em qual desses entendimentos de alma ele se encaixa, e nem importa. É como se ele dissesse que o sentido de completude é sempre alguma espécie de ficção, mas que nem por isso não podemos olhar mais de perto e tentar compreendê-lo.
O tempo todo, essa é uma história que nos lembra do porquê de estarmos tão cansados. Um porquê que pertence ao mesmo tempo à discussão sobre a exploração do tempo no mundo capitalista — que pretende resumir o tecido da vida à obrigação de produtividade –, quanto às teorias anímicas que explicam a existência da alma.
Então, por que estamos tão perdidos? Diz o livro: “Isso acontece porque a velocidade com que as almas se movimentam é muito menor do que a dos corpos. As almas surgiram no início dos tempos, logo depois do Big Bang, quando o universo ainda não tinha acelerado tanto e, por isso, podia se olhar no espelho”.
Se naturalmente já existe um delay entre o tempo físico e o tempo anímico (entendendo aqui como o tempo dos nossos desejos vitais mais genuínos), o que acontece então quando assumimos ritmos frenéticos que funcionam mais para nutrir o sistema que os sentidos? Estamos cegando os nossos poros de sentir a energia vital que nos anima? A pergunta é sinestésica e retórica assim mesmo, afinal, já sabemos a resposta.
No meio de uma pandemia que obrigou o mundo a se trancar para dentro de casa, parece justo perguntar de novo: somos os responsáveis por abandonar as nossas almas a ponto de nem sabermos mais onde elas estão? Em que ponto do caminho viramos uma casca oca?
Na história do livro, um homem acorda em um quarto de hotel sem saber em que cidade está. “Vistas das janelas dos hotéis, todas as cidades parecem iguais”. Ele se esforça, mas ainda assim não se lembra nem o seu nome. Pensa ser Mario, talvez André. Seu nome é João, o leitor fica sabendo. João, com seu nome comum e esquecido, somos nós todos em algum momento do dia, da semana, do ano. João sou eu. Quem já se olhou no espelho imaginando quem é aquele que o encara, sabe bem como é ter nome nenhum. Como diria o Kafka, “Precisamos dos livros que nos afetam como um desastre. (…) Um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós”.
Quando li “A alma perdida” pela primeira vez, fiquei com aquela vontade característica que bate quando lemos uma história tão boa que não pode ficar só com a gente. Eu queria ler para cada pessoa que passasse na rua. Até perceber que todas aquelas pessoas na verdade eram eu mesma. Eu tinha que ler de novo e novo, repetidas vezes, para mim mesma. Uma vez por dia, perguntar: eu vi minha alma hoje? Como ela se parece? Onde ela se acomoda? Quando ela fica desconfortável? Ela está respirando? Respirando, ela lembra de sorrir? Lembrei de uns versos da Adélia Prado, do poema “Humano”:
“A alma se desespera mas o corpo é humilde; ainda que demore, mesmo que não coma, dorme”
Quer essa tal de alma exista ou não, o fato é que a aceleração da vida nos desumaniza. Desumanizados, não percebemos que perdemos pedaços pelo caminho, então continuamos correndo. Correndo, continuamos perdendo coisas. E assim vai, ad infinitum . O que fazer?
O livro da Olga só não nos deixa totalmente desamparados porque faz uma sugestão aparentemente fácil de praticar: “Escute, você precisa achar um lugar só para si, sentar-se e
aguardar com paciência a sua alma. Ela deve estar, neste momento, no lugar onde você passou há dois, três anos. Portanto, a espera pode demorar um pouco”.
Pelo menos, foi o que fez esse homem chamado João. Você conhece o João?