Kati Martins
Uma clássica roda de capoeira angola começa com um-grito-canto-choro do mestre, bem melancólico e imponente: iêê. É a representação do signo do capoeirista para dizer que o jogo pode começar. Dito isso, convido vocês leitorxs, para antes de começar de fato esse texto-jogo, a colocar como plano de fundo uma cantiga de capoeira. Tenho certeza que o toque do berimbau vai levar seu corpo no balancê do meu movimento.
IÊÊ…
O corpo capoeirista anda sempre no balanço, atento e ativo, buscando a esquiva e saindo no rolê, sempre que necessário. E é dessa forma que costumo ler o mundo, procurando os movimentos das coisas. Como uma grande roda em que estamos todos vadiando, cada um com o seu gingado. É essa maneira de ler o mundo que une as duas manifestações que me movem enquanto indivíduo: a capoeira e a literatura, em que ambas carregam consigo saberes que se fundem. E é nessa fusão de saberes que nasce a palavra-performance: literaginga.
Literaginga é poesia, resistência e ancestralidade. É verbo.
É interessante pensar na tecnologia da palavra que ao unir diálogo e performance em um mesmo jogo, apresenta algo que esquiva em movimentos rasteiros, estabelecendo relação entre palavra, corpo e sentido. Apontando diferentes estratégias de resistência na literatura, desde Machado de Assis a Cidinha da Silva, em que é possível perceber a apropriação da tecnologia da ginga para permanecer nesse jogo.
Com isso, entende-se a literaginga como um campo de conhecimento inserido no contexto das epistemologias afro-brasileiras, que vêm se movimentando em seu caráter anticolonialista, antirracista e, mais recentemente, em seu caráter antissexista. Pensar em literaginga como uma categoria de análise, que engloba os saberes da capoeiragem e as experiências literárias como se fosse o fio do berimbau que dá ritmo à leitura que faço do meu mundo, é determinar a sua função dentro de todo o movimento, como a rasteira encaixada de um bom angoleiro.
CAPOEIRA
Ritual ancestral
de corpos que conversam entre si,
Criando floreios de diálogos corporais
É o corpo que responde aos comandos do outro
Jogo de perguntas e respostas
Volta ao mundo para perceber
O aço do berimbau,
A palavra escrita
A madeira envergada
O registo das coisas
A cabaça criando mundos
Começo e fim.
O berimbau é a ponte que liga diferentes espaços,
Ele é a alma da melodia nas rodas de capoeira,
É a partir dele que se inicia o jogo,
E é com ele que é determinado o fim da roda.
Som marcante
Capaz de ecoar vozes diversas,
A literatura é o caminho de registros
Com seus códigos decodifica o mundo
Meu mundo,
De gingas e letras
Duas manifestações;
Duas forças;
Capoeira e a literatura.
lado a lado
Literatura e ginga,
Que se fundem
Criando conceito epistemológico de mim
E que eu chamo
Literaginga.
Kati Martins
Baiana, professora, poeta e capoeirista. Ama as palavras e os movimentos que elas causam. Pesquisadora de Capoeira e Literatura. Atualmente trabalha desenvolvendo conceitos para o termo Literaginga. Fundadora, organizadora e curadora do sarau Não Cale a Arte desde 2017. Instagram: @martinskati