por Natália Barros
“Como artista, sempre tentei estabelecer uma ligação entre dois mundos: o chamado mundo real e um outro mundo alternativo de possibilidades e acaso, o mundo dos sonhos.” – Laurie Anderson
O SONHO ANTERIOR
(para Walter Benjamin)
Hansel e Gretel estão vivos e com saúde
E estão vivendo em Berlim
Ela trabalha num bar
Ele atuou num filme de Fassbinder
E eles estão sentados numa mesa nesta noite
Tomando schnapps com gim
E ela diz: Hansel, você está me deixando prá baixo
E ele diz: Gretel, às vezes você é uma vaca
Ele diz: eu desperdicei minha vida na nossa lenda idiota
Quando meu único e verdadeiro amor
Foi a bruxa má
Ela diz: O que é a história?
E ele diz: a história é um anjo
Olhando para trás enquanto é arremessado para o futuro
Ele diz: a História é uma pilha de ruínas
E o anjo quer voltar para consertar as coisas
Reparar as coisas partidas
Mas há uma tempestade que sopra do Paraíso
E a tempestade segue empurrando o anjo
De costas, rumo ao futuro.
E essa tempestade, essa tempestade
Se chama
Progresso.
(THE DREAM BEFORE
Laurie Anderson – Anéis de fumo
Tradução: João Lisboa – ed. Assírio & Alvim 1997
Adaptação de: Marcos Moraes)
“Durante o sono enquanto falamos
Escutem os tambores
Enquanto falamos
Enquanto falamos durante o sono
Escutem os tambores
Durante o sono
Durante o sono onde nos encontramos”
(In Our Sleep – Laurie Anderson e Lou Reed
Anéis de Fumo – Editora Assírio & Alvim
Tradução: João Lisboa)
De alguma maneira estamos sentindo o sopro gelado da tempestade – na nuca –
que nos arrasta para o futuro. No caminho vemos ruínas, escombros, lixo, matérias
inúteis e corrosivas. O que podemos sonhar que não seja ‘ordem e progresso’ das coisas em estado de falência? Como sonhar o futuro? Ou como entender as palavras do pesadelo moderno? Acordo bem devagar, permaneço com os olhos fechados e não me mexo. Submersa. Os sonhos aparecem em turbilhões intensos, lembranças náufragas, enredadas em musgos. Os sonhos produzem realidades que irrompem em meio aos destroços. Insone, traço uma ode ao fracasso, um fracasso glorioso, que se recusa a obedecer a ordenação abismal e ao progresso atávico. Escuto os tambores na noite. Os tambores ancestrais. O som da mão que toca a pele do tambor, epidermes que se encontram e produzem um ritmo contínuo. O som noturno, do corpo da floresta, de um mundo que não para de criar-se entre luzes e trevas. “Sentir a tristeza sem ser triste” diz Laurie Anderson – no seu filme ” Heart of a Dog”- sobre um ensinamento do seu mestre budista. Porque a alegria, não se opõe a tristeza desses dias, mas compõe com ela um novo olhar, caleidoscópico. Olhar telescópico & microscópico, que se move, criando clarões-constelações no presente. O futuro não está dado. E o som dos sonhos atravessa a noite escura. Escute.
Natália Barros é poeta.