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A falta.
A adaptação.
Puxa, agora não dá mais.
Tem que ser de outro jeito.
O que permanece?
Como não perder a textura dos encontros?
Parecia impossível. Quando a decisão de fechar A Casa Tombada física temporariamente, a que nos acolhe desde 18 de julho de 2015 à rua Ministro de Godói, em São Paulo, foi compartilhada já tínhamos a angústia desta misteriosa pandemia no coração. Parecia impossível. Ficar sem ir até lá? Assim, de repente? Mas como? Como continuar?
O curso de pós O Livro Para a Infância estava com uma turma começando seu segundo ano de percurso. Tínhamos nos despedido em fevereiro, mas, veja, não sabíamos. Uma despedida de corpo próximo. De abraços, de barulhos de vida ouvidos em comunhão. De café fresco, pão comprado especialmente para o lanche. De malas de livros minhas e da professora e coordenadora comigo no curso, Camila Feltre. Daquela variedade de cadernos e anotações de mundo. Um mundo junto.
Parecia impossível. Vamos parar por agora e esticar mais meses no ano que vem? Vamos adiar… Adiar? Adiar o que? Hoje vem Ailton Krenak em meu coração: estávamos a ponto de interromper as nossas ideias para adiar o fim do mundo.
Fizemos. Nos informamos. Qual melhor forma do encontro online? Quanto tempo? Que aplicativo? Todos podem? Precisam se cadastrar? Quais dias? Quantos medos. Parecia impossível. A gente se sentia uns escapando dos dedos do outro. As mãos dadas tão necessárias iriam permanecer? Como falar de livro se ele é pura textura? Textura da materialidade, textura do ler em voz alta que cultivamos juntos. Perdemos? Vamos recuperar?
A falta.
A adaptação.
Puxa, agora não dá mais.
Tem que ser de outro jeito.
O que permanece?
Como não perder a textura dos encontros?
Por pura intuição, fomos retirando juntos as palavras que nos desequilibravam. Os verbos “substituir” e o “adaptar” criaram amigos mais ousados. Ousados? Mais… nossos. Vieram o “inventar”, o “estar junto”. Eles eram próximos, era a Casa, os cursos. Criamos. Aproximamos.
A turma 6, a que foi “arrancada” da presença física da Casa, foi se ajudando. Em todos os sentidos. Experimentamos, aprendemos. Recebemos. Os professores inventaram, compraram câmeras, ficaram felizes com o frio na barriga de começar algo novo. Os estudantes puderam ter tempo de olhar para as suas vidas atravessadas por tanto, abriram-se, acolheram-se nas faltas, assumiram querer continuar o sonho.
Camila e eu começamos outra história e a chamamos de Que Coisa Incrível É Um Livro, inspiradas em um admirador das estrelas, Carl Sagan. Giuliano Tierno nos trouxe a frase: “Que coisa incrível é um livro. É um objeto achatado feito de árvore com partes flexíveis nas quais nós imprimimos uma porção de rabiscos escuros e esquisitos. Mas basta olhar para ele e você está dentro da mente da pessoa, talvez de alguém morto há milhares de anos. Através dos milênios, um autor está falando claramente e silenciosamente dentro da sua cabeça, diretamente a você. A escrita talvez seja a maior das invenções humanas, unindo pessoas que nunca conheceram umas às outras, cidadãos de épocas distantes.
Os livros rompem os grilhões do tempo. Um livro é a prova de que os humanos são capazes de realizar magia.”
Era a chave. Veio uma porção de gentes. Sabe, gente de verdade? Vários cantos do Brasil ali em pequenos retângulos na tela de cada computador. Eram imensos. Nem couberam. Foram expandindo em leituras e releituras, criaram seus próprios jeitos de narrar o que (nos) acontece nestes tempos esquisitos. Alguns mal podiam esperar a semana passar. Havia muito o que dizer junto.
Com tanta textura já no nosso corpo online, pensamos que as distâncias… as distâncias estavam como olhar as estrelas. Este perto e longe tomaram outras proporções. Virou tudo matéria de poesia. Tinha gargalhadas e lágrimas, luzes de todas as cores. Nos inspirou a continuar o “ainda assim estudar”. Abrimos nosso primeiro curso online de pós-graduação O Livro Para a Infância. A gente já tinha desejos manifestados em e-mails, comentários nas redes, amigos de fora de São Paulo. E eles nos mostraram que poderíamos. Na companhia e competência de Palmira Petrocelli, criamos uma plataforma de estudos, fomos entendendo as possibilidades da escrita e do compartilhar. Ai. Parecia impossível. Cadê o piso de madeira, o leve tombado da casa centenária e a água de filtro de barro? Uma procura linda de desejos de todos os lados e em julho a turma 7 já vinha de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Bahia, Pará, Amapá… opa, tem alguém de Portugal chegando. Pousou aqui. Está com a gente mesmo com a diferença de fuso horário. Mas é tempo e espaço tudo virado, mexido, vivido, adapta… ops, adaptado, não, INVENTADO. Veio até criança. Muitas nos espiando de seu retângulo-casa. Eram elas! São elas!
O último desafio foram as conversas no whatsapp. Turma grande, turma distante até com vizinho de bairro. Turma que se amiga em livro, em vontade de se posicionar politicamente, de querer entender os desdobramentos éticos e estéticos dos processos contemporâneos do livro para a infância de criação, circulação e mediação. O que fazemos? Lemos tudo? Respondemos tudo? Lincamos tudo?
Parecia impossível. Até que um dia, Camila Feltre, nossa querida Mariana Amargós – que já foi estudante e hoje é da nossa equipe – e eu nos demos conta de que ali era:
O café feito na hora
O bolo trazido da padaria
As mantas nos dias mais frios
O ventilador para ajudar as janelas arejadas
Os cantos dos passarinhos
A vez de um falar na vez do outro pensar
A rede para descansar
A Flávia e a Rita na secretaria da Casa
O Valdemi organizando as cadeiras
A Simone molhando as plantas
A Soraia no andar de cima criando nossa comunicação com o mundo
Todo mundo lavando louça, fechando o portão
Ângela e Giuliano plantando palavras conosco nas vozes fortes, nos poemas nos vidros, nas flores aqui e ali.
Renascemos juntas, juntos, juntes.
E nada será como antes. Ainda bem.
crédito das imagens:
Isabela Vilela
Amma
Ananda Luz
Fabiane Vitello
Isabela Rodrigues
Camila Feltre
Mariana Tavares
Monisa Maciel
Suzana Buccalon
Suzana Buccalon
Fran Junqueira
Mariana Parreira
Monisa Maciel
Breno Morita
Ilana Reznik