por Tamiris Maróstica da Costa
Quando eu me deparei com a necessidade de escrita do meu projeto de TCC do curso “O livro para a infância”, eu sabia apenas que queria trabalhar com duas coisas: a mediação de leitura e o corpo. Sim, pois eu sou bailarina e também professora de português, mas sempre me vi diante do dilema: como fazer esses dois universos convergirem? Bem, a resposta eu ainda não sei, mas foi a partir dessa pergunta que eu decidi escolher um livro e estudar corporalmente formas de mediá-lo.
Nesse processo de busca, eu percebi que queria trabalhar com um livro que fugisse um pouco do formato tradicional, revelando mais sua materialidade e possibilitando novas interações, uma vez que minha intenção seria explorar o uso do corpo na mediação. Nesse sentido, o livro-objeto caiu como uma luva, pois ele articula de maneira muito criativa forma e conteúdo, pois sua materialidade tem função na narrativa. Por exemplo, além do texto outros elementos se somam ao projeto gráfico, como o tipo de papel, os cortes das páginas, os acabamentos, as dobras, as estruturas internas e externas, as imagens, e também as relações que vão se estabelecendo com o livro a partir daí, seja o ato de virar as páginas, as possibilidades de esse livro se colocar no espaço, as formas de segurá-lo, ou tudo isso junto. E foi nesse momento que eu me deparei com o livro-objeto “Pequena coleção de insignificâncias”, do meu querido amigo Thiago Cohen, que é um verdadeiro tesouro.
O livro-objeto “Pequena coleção de insignificâncias” faz parte da coleção “Coreografias de papel”, que está vinculada à Editora Conexões Criativas junto à TANTO – criações compartilhadas, e propõe a “transposição de criações coreográficas para livros-objetos que despertem o interesse da infância e da juventude”. E foi a partir do espetáculo solo “Demolições (La petite Mort)”, que o bailarino e escritor Thiago Cohen criou o livro (1).
Bem, o livro tem o formato de caixa, uma caixa retangular em papel kraft cujo título e ilustrações de capa aparecem em dourado brilhante, além disso, há também uma luva vermelha com o título em dourado. Dentro da caixa há diversos compartimentos que você pode ler e explorar aleatoriamente, sendo quatro no total, em diferentes formatos. Quando você abre o livro há um estojo fino em formato retangular com dezoito poemas avulsos que se parecem com cartas, eles são todos ilustrados na cor dourado e tem o fundo em tons de azul, vermelho e verde. Em cada poema há uma palavra que pode ser destacada, simbolizando uma espécie de pequena morte, e o leitor, a partir desse gesto, pode somar algum sentimento ou percepção à leitura, permitindo que os horizontes se alarguem. Além disso, é possível criar outros poemas a partir da junção dessas palavras destacadas e um dos poemas que eu mais gosto desse grupo é “O que move o afeto move também a montanha”, e afeto é a palavra destacável. Abaixo desse primeiro estojo há outros três, em tamanho menor e com títulos diferentes: o guardador de imensidões, o aguçador de sentidos e o colhedor de singelezas. O guardador de imensidões é uma caixinha fechada com a abertura de apenas um furinho no centro, que propõe a colheita de pequenas imensidões: segredos, confissões, memórias ou mesmo objetos pequeninos e preciosos. O aguçador de sentidos é um estojo com cento e trinta e duas cartinhas que são pequenos aquecimentos poéticos divididos em três campos: aquecimento físico, aquecimento imaginativo e aquecimento interativo com o livro. Por exemplo: “enquanto caminha, perceba as cores que o vento tem”, “deixe ir com o vento um de seus medos”, “sussurre um segredo no guardador de imensidões”, e a partir desses elementos mediadores é possível criar formas e possibilidades de se ler-compreender-interpretar-sentir o livro. Já o colhedor de singelezas é uma caixinha aberta e sem tampa, onde você pode começar pequenas coleções, como folhas e flores que estiverem pelo caminho, pequenos objetos que você goste muito ou mesmo as palavras destacadas dos poemas do primeiro estojo. O livro, por fim, traz infinitas possibilidades de coreografarmos nossos gestos, seja ao abrir a caixa, ao ler um poema, ao executarmos um aquecimento poético, ao coletarmos uma flor que esteja no caminho, ao colocarmos o livro no espaço, ao observarmos o horizonte a partir de uma carta destacada, enfim, é um convite à dança e ao movimento.
Há ainda detalhes infinitos que o livro nos traz, mas o mais interessante foi saber como ele surgiu, e foi a partir de uma entrevista/conversa com o próprio Thiago Cohen que eu tive a oportunidade de descobrir cada detalhe. Como eu disse, Thiago é um amigo muito querido, que me acompanha desde outras aventuras, principalmente aquelas ligadas à arte, à dança, ao cuidado e à delicadeza, e foi a partir daí que nós nos encontramos virtualmente: eu, ele, duas colegas do curso e duas professoras, uma delas minha orientadora de TCC, Cristiane Rogerio.
Bem, antes de falar do livro propriamente, Thiago faz um percurso que é quase uma biografia de seus últimos trabalhos, em que ele vai relembrando os grupos pelos quais passou e as pessoas com quem se relacionou artisticamente, ressaltando seu desejo pela criação de uma “coleção de momentos mágicos” e a necessidade de pensar a poesia como ponte de conexão entre construções artísticas, ampliando sentidos e criando mundos possíveis.
A partir desse percurso, Thiago fala sobre seu espetáculo solo “Demolições (La petite Mort)”, que aborda um estudo sobre a demolição, aonde ele vai relacionar seus sentimentos pessoais no processo de mudança de São Paulo para Salvador aos processos de demolição de uma casa vizinha, onde ele faz um ensaio fotográfico. Ali, ele se permite refletir sobre a sensação do ir embora, o rito de passagem, a saudade sentida no corpo, o se ver em pedaços, as pequenas mortes e os pequenos desapegos. Em sua pesquisa, ele busca trabalhar com elementos materiais da casa, como areia, terra e tijolos, descobrindo por fim a argila como elemento cenográfico e coreográfico, que lhe permite criar camadas por meio de rastros, traços, linhas, cores e poeira pelo espaço. Esse espetáculo, para ele, é como uma espécie de rito de passagem.
O solo “Demolições (La petite Mort)” foi então a obra que lhe permitiu entrar na proposta da coleção “Coreografias de papel”, da Editora Conexões Criativas, e foi a partir do desafio de se materializar em papel uma obra dançada, que Thiago Cohen nos convida à leitura. O livro fala sobre pequenas imensidões e é a síntese de uma maneira de olhar o mundo. Nele, Thiago traz uma forma quase Manoelística de ver e pensar o mundo através da poesia, debruçando-se sobre o exercício de escrita que ele chamou de “palavras grávidas”, que seria investigar quais palavras se encontram dentro de outras palavras. “Pequena coleção de insignificâncias” fala sobre pequenos acontecimentos poéticos, sobre o descobrir aos poucos, sobre o receio de se destacar uma palavra e não mais poder devolvê-la ao poema, sobre tirar a carta de dentro da caixa para tirar algo que está dentro da gente, sobre essa relação tão íntima e única que se estabelece entre nós e o livro. Thiago afirma que o livro é uma metáfora da própria vida, é um convite ao movimento, é uma possibilidade de lidarmos com o efêmero, com o rastro, o lapso, é uma tentativa de se materializar o encantamento, e isso só é possível porque ele atravessa, de maneira muito sutil e delicada, o campo de afeto de cada um.
(1) Para conhecer mais o trabalho de Tiago Cohen: