por Arturo Gamero
Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto
quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.
Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas
Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:
“Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,
sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos
e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”.
Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas,
Por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso
Colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto
Divino para que eu glorie o futuro e o passado,
Impeliram-se a hinear o ser dos venturosos sempre vivos
E a elas primeiro e por último sempre cantar.
Mas por que me vem isto de carvalho e de pedra?
(Hesíodo, Teogonia 22-35)
Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente.
(Moises, Genesis 2, 7)
Sonâmbulos
Hoje, estas passagens nos soam como fragmentos de mundos extintos, profundamente adormecidos, agitam-se suavemente na penumbra dos olhos. O sonâmbulo é aquele em que a noite vivifica o laconismo onírico a tal ponto em que o corpo levanta-se numa rebelião comovente. Fui uma criança sonâmbula, caminhava pela casa, descia escadas, respondia a quem me interrogasse. Eu dizia apenas a verdade e não me lembrava absolutamente de nada. Lembro-me apenas de andar. Lembro-me de ver. Lembrar é cruzar entre os fragmentos evocados num arquipelágico tecido, cercado pelo mar das horas escoadas. Fiando o tecido da noite, um moinho meditante aproximou Moises de Hesíodo. O silêncio entre estes dois fragmentos espera por uma decifração pacientemente. Diria apenas que entre judeu egípcio e haedo se abre um horizonte pneumático, o recuo de um cenário repleto de sussurros ontológicos e alento natalício. O ato do sopro é um fóssil gestual cuja reminiscência faz o silêncio encher-se de argila e vozes liriais.
imagem: Arturo Gamero