Um defeito de cor de Ana Maria Gonçalves, por Bel Santos Mayer

por Bel Santos Mayer

 

Lançado em 2006, o romance Um defeito de cor de Ana Maria Gonçalves não é um livro fácil de ter-se em mãos e, ao mesmo tempo, é difícil soltá-lo. Somos captadEs antes mesmo de entrar na narrativa. Na dedicatória à família, amigos e historiadores/escritores/pesquisadores etc., Gonçalves inclui três provérbios africanos: “Quando você segue as pegadas dos mais velhos, aprende a caminhar com eles”; “Amigo é como um vizinho quando Deus está distraído”; “Uma chama não perde nada ao acender outra chama”. Os prêmios recebidos (como o Casa de las Américas – Cuba, 2007), sua inclusão na lista de mais vendidos, as muitas resenhas e estudos acadêmicos sobre a obra justificariam a indicação; no entanto permito-me acrescentar outras linhas.

 

Estudiosa das relações raciais no Brasil e acostumada a leituras sobre os horrores da escravidão, faltava-me olhar este momento histórico sob a perspectiva de uma mulher: Kehinde, “laçada” no Daomé (Benin) aos oito anos de idade e jogada em um navio negreiro com sua irmã gêmea e avó para serem escravizadas no Brasil. Foi preciso que Ana Maria Gonçalves escrevesse 947 páginas para que eu olhasse para as condições distintas entre homens e mulheres nos navios negreiros, nas formas de castigos e abusos, nas revoltas, confrarias, fugas e alforrias. É Kehind, octogenária e cega, em viagem para o Brasil em busca de um filho vendido pelo genitor, quem narra a história, depois de tentar refazer sua vida em África. Ela não nos poupa dos detalhes da sua saga: as emoções, os amores, as perdas; tudo bem enredado, diz muito sobre os costumes e a história da escravidão negra no Brasil do século XIX.

 

Na orelha do livro, Millôr Fernandes diz que se trata de um romance para ler sem parada para respirar, e desafia: “Desmintam-me por favor”. Eu não posso fazê-lo. Um defeito de cor foi uma das leituras que não fui capaz de parar e tampouco de guardar para mim: contei, recontei, envolvi várias pessoas em leituras, encontrei-me algumas vezes com a autora e sigo sugerindo que leiam. Leiam neste 2020, ano em que uma pandemia paralisou o mundo e lembrou-nos que estamos mais conectados do que imaginávamos. Vemos multiplicarem-se os eventos sobre “o mundo pós-covid-19”; na maioria deles conclui-se que temos a oportunidade de rever muitas atitudes: uma delas, ouso dizer, é a ausência de autoria negra em acervos literários. Esta indicação é um convite: leia autoras negras!

 

 

Sobre a foto: Há exatos três anos, encontrava-me ao lado da A Casa Tombada, no Parque da Água Branca, comemorando meus 50 anos de vida. Fez parte da comemoração a leitura de um trecho desse livro para a amiga Mafoane Odara e sua filhinha Makini:

 

Com o poder dos pássaros, as mulheres receberam de graça e de nascimento o axé, que é uma energia que os homens têm que cativar. Não me lembro direito da explicação para este poder estar desde sempre com as mulheres, mas acho que está relacionado ao ninho, representado pela cabaça, ou ao ovo, gerado pelo pássaro. Só sei que, por meio dele, as mulheres passaram a ser as que geram, as que fertilizam, as donas da barriga, que é por onde circula toda a energia e a vida do corpo, através do sangue. É por isso que as mulheres têm as regras, porque o grande poder feminino segue o rastro do sangue .(GONÇALVES, 2011, p. 578)

 

Bel Santos Mayer é educadora social, coordenadora do Ibeac/LiteraSampa

 

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