Carta a Paulo Freire sobre o Conta Pra Mim, por Maiara Estácio

 

por Maiara Estácio

 

Era uma Jornada de Pesquisa da Turma 6 do nosso curso de pós-graduação O Livro Para a Infância: processos contemporâneos de criação, circulação e mediação. Era uma manhã de um sábado em que os estudantes haviam sido convidades a expor suas ideias para o TCC – texto de conclusão de curso – a ser finalizado ano que vem. 

Mas a estudante Maiara Estácio nos alcançou em um grito doce, inventivo e repleto de argumentos irrefutáveis. Para a sua pesquisa A Potência do Livro Ilustrado e o Combate à Literatura Moralizante – análise do programa Conta Pra Mim, ela escreveu uma carta ao educador Paulo Freire. Nós desabamos em lágrimas, conversando com a dor de Maiara e a sua força de uma jovem professora com tanto a nos dizer. 

 

São José dos Campos, 05 de dezembro de 2020

Dr. Paulo, 

É com muito prazer que lhe escrevo. Confesso que não foi nada fácil fazer estas palavras chegarem ao senhor, atravessando grandes distâncias no espaço e no tempo, afinal, são mais de 50 anos e 3.000 quilômetros que separam o Brasil de 2020 do Chile de 1968.

      O mundo de hoje é bastante diferente daquele que o senhor conheceu (ou melhor, conhece!). Não temos carros voadores nem colônias em Marte, o futuro chega a prestações, um pedacinho aqui, outro ali. Já podemos ver quem amamos ou conseguirmos uma pizza apenas apertando uma tela pequenina, mas ainda não vencemos a fome, acredita? Estamos tão longe daquele mundo que o senhor esperançou com uma boniteza tão grande. Há alguns anos nós, brasileiros, sentimos ele vindo a passos um pouco mais largos, que pareceram firmes e definitivos, mas ele tropeçou de um golpe e temos a sensação agora de que caminhamos para trás. Apesar das já citadas distâncias, parece que não estamos tão longe assim.

      Há um contemporâneo seu e meu, que também passou um certo tempo enclausurado por um regime tão cruel quanto o nosso, que disse umas palavras bonitas as quais eu me atenho quase que diariamente. Talvez elas te tragam um pouco de força também, não que você já não as tenha de sobra: Ele diz que nenhuma derrota é definitiva, assim também como nenhuma vitória. Seu nome é José Alberto Cordano, mas todo mundo se sente tão próximo dele a ponto de chamá-lo de Pepe. As derrotas de seu tempo não são definitivas. Você é um homem de muita fé, e deve crer nisso também. Quero crer que as nossas também não serão.

      Dedico minha vida a mesma paixão que você dedica a sua: a educação. E é sobre isso que preciso lhe falar. Acontece que, no final de 2019, a Secretaria de Alfabetização, ligada ao Ministério da Educação, o MEC, lançou uma coleção chamada Conta Pra Mim. Ela é parte do Programa Nacional de Alfabetização – o PNA -, e seus 40 livros estão disponíveis gratuitamente online (é uma espécie de televisão interativa, uma longa história). O foco desse programa são “todas as famílias brasileiras, tendo prioridade aquelas em condição de vulnerabilidade socioeconômica”, como diz o texto oficial do governo Jair Bolsonaro, nosso atual presidente. A notícia boa é que estamos vivendo em uma “democracia”, a ruim é que essa palavra também é usada entre aspas. Enfim, o MEC pretende investir, em parceria com a Unesco (ela mesma!), R$ 18 milhões na “aquisição e impressão dos materiais a serem distribuídos”. Todos esses livros foram produzidos sob a supervisão técnica do secretário de alfabetização do MEC, que se chama Carlos Francisco de Paula Nadalim.

      Para quem vive imerso na educação, essa pode parecer uma notícia muito boa, não? Mas ela preocupa, e muito, a mim e a meus colegas. Para começar, o Carlos Nadalim é admirador e ex-aluno do Olavo de Carvalho, que é um teórico da conspiração de extrema-direita, que sequer mora no Brasil e, inclusive, é o grande mentor intelectual da família Bolsonaro.

      E os livros, professor, segundo muitos especialistas entrevistados por uma revista muito bacana que existe atualmente, a Quatro Cinco Um, possuem ilustrações “toscas e primárias”, com uma linguagem simplificada apostando numa incapacidade de entendimento do leitor e com adaptações descoladas de nosso tempo. Eu sou uma mulher negra, Paulo, e me fere ter percebido, por exemplo, que apenas quatro dos quarenta livros apresentam pessoas negras na posição de personagens principais. Aliás, supostamente pessoas negras, uma vez que parecem não passar de personagens desenhados enquanto brancos e posteriormente pintados de marrom. E, para piorar, não há protagonistas indígenas ou asiáticos. De que forma isso pode representar nosso país? Qual a mensagem que querem transmitir aos pequenos e pequenas? Você sabe melhor do que todos nós o absurdo que é qualquer projeto educacional que não leve em conta a realidade dos educandos. A própria mascote da coleção é um ursinho que veste um capuz, um animal que sequer faz parte de nossa fauna.

      Como se não bastasse, obras conhecidas que atravessaram gerações foram adaptadas ignorando-se os autores das criações originais, atribuindo os créditos a uma genérica “Equipe da Secretaria de Alfabetização”. Para se ter uma ideia das histórias, na adaptação de Chapeuzinho Vermelho o caçador não mata o lobo, mas este tropeça e cai em um rio “para nunca mais voltar”. A realidade de grande parte das crianças brasileiras está envolta em uma atmosfera de violência, em um país de traficantes, milicianos e policiais armados. O que se pretende com a intenção de protegê-las da imagem do caçador e de sua violência? Oh, Doutor Paulo, você muito bem sabe que essa não é a nossa realidade!

      Em outra, o rico não foi punido por sua cobiça, mas se tornou amigo da família pobre. Que ideia é essa de se conciliar opressor e oprimido? E na clássica João e Maria, que esses não são abandonados no bosque pelos pais que, em situação de miséria, não tinham como alimentá-los. Ao invés disso, saíram para colher flores! Como disse a grande Marina Colasanti, João e Maria foram sim abandonados pelos pais, uma prática recorrente na Idade Média em períodos de fome. Nós não vivemos, enquanto país, a experiência da Idade média, mas conhecemos como poucos a experiência da fome. Não seria enriquecedor nossas crianças perceberem que não estão sozinhas na realidade da fome, sendo apresentadas a um enredo no qual as crianças conseguem achar uma saída? Mas essa realidade é esquecida de forma ultrajante: em alguns vídeos associados a coleção há sugestões para se fazer um lanche com pipoca e chocolate quente durante as histórias, além da sugestão de que as famílias escolham lugares confortáveis. Isso é uma profunda ignorância da realidade brasileira ou não passa de cinismo, professor?

      Qual a concepção de uma literatura assim, Doutor Paulo? Qual a concepção de criança? Estamos falando das nossas crianças brasileiras!

      Doutor Paulo, esses dias assisti a uma Live (espécie de aula na televisão interativa) na qual a professora Liliân Borges apontou que os discursos que esses livros possuem são utilitários, de ensinagem, de moldar as nossas crianças de acordo com algum comportamento, que vai contra a arte da literatura que transgride, troca, amplia, abre possibilidades, dialoga, que não mostra um caminho, mas vários! Cabe a literatura ampliar, não reduzir. Você concorda, professor?

      Não há um discurso estético, aquele que não direciona o leitor, que questiona o mundo, que dialoga com quem lê, que sensibiliza, que afeta… um convite à experiência. O “projeto gráfico” não possui diversidade de ilustrações, não abre possibilidades de diferentes atravessamentos. Como pontua José Castilho, um grande lutador pelo livro e leitura no Brasil, “a ilustração não é apenas deixar a página bonita, ou chamar a atenção. Muitas vezes a ilustração carrega um texto que não é escrito”. As ilustrações são estéreis, Paulo. Por que desconsideraram nossa ampla tradição no tema da literatura para infância? Temos grandes autores, editoras com décadas de experiência, acadêmicos… todos ignorados! Acreditamos na Literatura como arte da palavra, da imagem e da materialidade. Mas me parece que eles não.

Professor, ainda naquela Live, a professora Andréia de Oliveira destacava com muita veemência que vivemos em um país que precisa de lei para literatura negra e indígena entrar na escola; lei para que a diversidade cultural entre na escola, para que ela não seja censurada, colocada na fogueira. Lutamos por isso, professor, e me aparecem com livros sem representatividade! Por que é esse o modelo de literatura que vai chegar na casa dos pobres? Como famílias sem acesso ao básico irão imprimir livros coloridos? Qual a visão que eles têm sobre as classes desfavorecidas? Que são passivos, não questionam? Queremos pessoas que possam escolher seus próprios livros, depois de conhecerem vários deles. Isso também faz parte de uma prática democrática.

Além dos livros, Doutor Paulo, o programa contém um arquivo de 72 páginas intitulado “Guia de Literacia Familiar do Conta pra Mim”, 40 vídeos para instruir as famílias e uma série de histórias narradas. A literacia tem a ver com entender o que o autor quer dizer, conseguir refletir sobre o texto e ao mesmo tempo ter ideias próprias a partir do diálogo com o texto. Em suma, é o que chamamos desde o seu tempo de letramento. Já a tal literacia familiar, segundo o MEC, “é a ação de interagir, conversar e ler em voz alta com seus filhos”. O problema se aprofunda com a tentativa do ministério de justificar sua facilidade: “não é preciso ter muito estudo, materiais caros nem morar em uma casa toda equipada e espaçosa para praticar a Literacia Familiar. Ela é acessível a todos. Bastam duas coisas: você e seu filho.”

Os problemas dessa pretensa facilidade são tantos, Paulo. Para começar, como fazer isso em um país que, segundo dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF), 88% da população têm algum nível de analfabetismo funcional? Realmente apenas a presença de um adulto e de uma criança é suficiente? E o quanto isso não significa transferir para as famílias a responsabilidade da falta de letramento, da falta de acesso a uma educação realmente transformadora? Como falar isso para às 11,5 milhões de mães solo que existem em nosso país?

Outra coisa que me incomoda, professor, é que os pais são direcionados para verificarem, com perguntas, o entendimento das crianças, corrigindo-as sempre que necessário. Há um direcionamento do leitor, um cerceamento das interpretações com uma ideia antiquada de certo e errado. E há nisso também um direcionamento num sentido de ler para as crianças, e não com as crianças.

Outro ponto que me entristece é o preconceito linguístico que permeia toda a coleção. Aborda-se a necessidade de modelar a linguagem das crianças, com um determinismo de que quanto “melhor” a fala dos pais, melhor será a dos filhos. O que seria uma linguagem melhor, Paulo? Um administrador de empresas em São Paulo tem uma fala melhor, conhece mais nossa língua, do que um agricultor do sertão de Alagoas? Isso o torna mais brasileiro? O que Guimarães teria a dizer sobre isso? Nesse sentido, não há variações linguísticas. As crianças não se veem nas personagens, nos enredos. Há apenas a linguagem de uma classe privilegiada. Como ter uma educação democrática dessa forma? Como isso pode ser pensado como se fosse uma democratização da leitura?

Por fim, professor, sinto que há a ideia do livro como um grande salvador. Basta ler – o que, para eles, qualquer um pode fazer -, que a sua vida e a de sua família irão melhorar. Eles falam também que se você não souber ler “volte a estudar. E veja isso como um esforço pela sua família”. Além de terceirizar aos indivíduos um problema que é do Estado, isso é quase uma chacota quando olhamos para o quão intelectualizada nossa elite financeira é. Consegue imaginar?

Professor, penso que seja necessário um processo de formação com as famílias, para que seja possível contrapor essas visões e deixá-las a opção de acesso a compreensão da literatura com esse viés estético e libertário, indispensável para a construção do leitor e do ser.

Perdoai, Paulo,

Mas eu preciso ser Outros.

Como Manoel de Barros, Eu (também) penso renovar o homem usando borboletas.

 

Um abraço de uma grande admiradora,

Maiara Estácio. 

 

 

FONTES:

Programa Conta Pra Mim – MEC: http://alfabetizacao.mec.gov.br/contapramim

Live: Roda de conversa sobre a Coleção “Conta pra mim”: cadê a literatura? – https://m.youtube.com/watch?v=pQMwh85BZ9k

Revista Quatro Cinco Um – Conta outra: https://www.quatrocincoum.com.br/br/noticias/politicas-do-livro/conta-outra

Marina Colasanti – Não Conta pra Mim: https://www.marinacolasanti.com/2020/10/nao-conta-pra-mim.html

 

Cursos d'A Casa

[29/04/21] Descobrindo os 4 elementos da astrologia em nós – com Liliane Pellegrini e Melissa Migliori

[13/03/21] Correnteza: uma jornada de mulher em jogo – com Yohana Ciotti

[09/03/21] Educação antirracista com histórias: mitos e contos africanos e afro-brasileiros – com Giselda Perê

[09/03/21] Ateliê de voz: escuta, experiência e criação – com Renata Gelamo

[09/03/21] Escreviver – com Lúcia Castello Branco

[08/03/21] A Linha e seus papéis – com Edith Derdyk