por Edith Derdyk
O que podemos esperar para além da curva daquela trilha que caminha para alcançar o vale?
Ou da encosta que sobe para encarar o contorno de um horizonte?
Ou dos cantos das esquinas de uma cidade, feitos de um coral dissonante tal o marulho das ondas do ar?
Esta topografia dos encontros inesperados entre as coisas do mundo acontece porque existem relatos que enunciam sobre estas experiências vividas e, os relatos de um caminho percorrido, só existem porque existe um caminhante desejante de relatar sua experiência.
As modalidades do caminhar são quase infindas, tantas quantas são as existências que atravessam o arco civilizatório, desde quando a natureza humana ‘inventou’, em sua composição celular, uma espinha ereta capaz de sustentar seus passos nas travessias a longa distância, vincando seus rastros escriturais nos territórios, inscrevendo marcas e traços na configuração de seus relatos verbais e/ou visuais.
Como artista da linha, pesquisadora do desenho e praticante amadora de caminhadas, a compreensão do ato de caminhar correlato ao ato de desenhar e escrever, transformados em registros e dispositivos para a construção de conhecimento que nasce na via da experiência, veio como uma veia cardíaca, ecoando seus acordes no desejo comum praticado pel’A Casa Tombada em busca de conhecimento, efetivamente afetivo ou afetivamente efetivo.
Desses meus interesses forasteiros pelos desenhos inscritos no tempo, dada a aventura humana em atravessar os espaços físicos, nasce então a Pós-Graduação “Caminhada como Método para Arte e Educação” em 2017, que A Casa Tombada recebeu, amparou e projetou como um desafio em estado de fiação contínua: um curso de formação investigativo, uma proposição imersiva pautada na formulação da ‘caminhada como prática poética’, tal como escreve Francesco Careri no subtítulo de seu livro fundante Walkscapes (1).
Para cada percurso – individual e/ou coletivo – dessa Pós-Graduação, os relatos de cada caminhante-pesquisador que se dispõe a experimentar as inúmeras modalidades do ato de caminhar como prática poética, se mostram únicos, intransferíveis e singulares. Para cada relato, uma voz timbrada revela um espectro amplo de registros que vão da escrita aos desenhos, das fotografias aos vídeos, acompanhados de leituras e conversas sobre os desafios em migrar tais experiências, por vezes quase indizíveis, na generosidade dos relatos compartilháveis.
Contextualizando este percurso vivido no decorrer da Pós-Graduação, o entendimento de que para cada passo existe a potência errática do desejo de acontecimento que pode estar ali habitando o outro lado da curva, o alto da montanha, o fundo do vale, o canto da esquina de uma cidade, se traduz nos trabalhos finais. Usualmente estes são nomeados como Trabalho Final e que, aqui, renomeamos como Relato de Caminhante, convocando uma experiência de aprendizado que escapa às normas cartesianas de produção de conhecimento, pois nunca sabemos ao certo onde cada caminhante-pesquisador irá ancorar o seu próximo passo .
Nos colocamos disponíveis para a travessia daquilo que ainda não conhecemos e nem sabemos nomear, mas cujo desejo de errância mobiliza e anima este ‘caminhar’.
Convidamos à uma leitura compartilhada de três Relatos de Caminhantes, resultantes da Primeira Turma que finalizou seu percurso em 2018. O interesse em disponibilizar simultaneamente estes três trabalhos se dá pela vontade de prismar uma paisagem em estado de relação, dadas as suas singularidades e diferenças por um lado (seja no conteúdo, seja na forma) e, por outro lado, trabalhos que resultaram de uma disponibilidade em comum de se colocar, de forma cúmplice, em movimento, em deslocamento, em descolamento de sentidos para atualizar perspectivas e horizontes.
Os trabalhos de Angela Quinto, Lea Moraes e Mariana Galender (2) partem de repertórios e interesses muito distintos e chegam em territórios e mapeamentos inéditos em seus percursos individuais.
Agora, já nos encontramos na Terceira Turma que inicia seu per-curso em plena época de resguardo, resultante da pandemia, o que me fez redesenhar a geografia do curso, convocando a natureza do pensamento em estado de nomadismo.
Notas:
1.Careri, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. Editora GG . 2013
2.Quinto, Angela. CartasQuaisquer; Moraes, Lea. Habitar-se de: Relatos de experiências de um ser em estado de experiência; Galender, Mariana. Marcas de uma caminhada: o que fica de tudo aquilo que escapa e o passo possível
Link para a leitura dos trabalhos de Conclusão de Curso, na íntegra:
-CartasQuaisquer, de Angela Quinto:
http://plataformapesquisas.acasatombada.amarelinha.cc/omeka/items/show/1512
-Habitar-se de: Relatos de experiências de um ser em estado de experiência, de Lea Moraes:
http://biblioteca.acasatombada.amarelinha.cc/omeka/items/show/1513
–Marcas de uma caminhada: o que fica de tudo aquilo que escapa e o passo possível:
http://plataformapesquisas.acasatombada.amarelinha.cc/omeka/items/show/1511