Por Angela Pappiani

Setembro de 2021

 

Demorei muito tempo para me dar conta de quão profundamente fui afetada pelas histórias de minha infância. A sensação boa de aconchego, sentada no chão entre os primos, com cheiros bons de flores e frutas do quintal e a figura forte e protetora do avô nos fazendo voar para lugares mágicos com o som de sua voz rouca de fumante de Continental sem filtro.

Ele contava histórias nas noites sem televisão, na velha casa de periferia da grande cidade de São Paulo. Talvez para amenizar o dia de trabalho pesado de mecânico de caminhões, para estar próximo das crianças e se alegrar com suas carinhas de espanto e descoberta ou simplesmente para se sentir vivo, criando mundos tão distantes de sua realidade.

Eu viajava longe, sentia na pele o vento e o sol, no balanço suave do barco em pleno rio, ouvia o alarido das aldeias e sentia os abraços calorosos do povo nu, de corpo pintado, que recebia o avô amigo e aliado. O esturro da onça me dava arrepios, o canto dos pássaros me alegrava, a caçada ao porco do mato me fazia tensa, a chuva molhava e o fogo aquecia o corpo.

Eu era pequena e acreditava naquelas histórias.  E sonhava com o dia em que poderia acompanhar o avô herói em suas aventuras pelas florestas. Meu avô Antônio adoeceu de tristeza depois da morte de minha avó e se esqueceu das histórias. Então, me deu livros, os primeiros livros da casa simples, de uma família extensa de imigrantes italianos que não frequentavam escolas. Assim segui sonhando com as histórias escritas que me instigavam, menina curiosa e gulosa de mundo.

Nunca tive a chance de perguntar ao avô Antônio de onde vinham as histórias. Mas essa pergunta ficou dentro de mim, guardada, ansiando resposta. E, de repente, os desejos de menina se materializaram. Me vi adulta, mãe, jornalista, companheira de lutas, navegando pelos rios e igarapés, pisando o chão macio das florestas, encantada com os horizontes do cerrado, chegando às aldeias e me entregando ao abraço generoso e verdadeiro de povos de línguas e jeitos tão diferentes. Tantos mundos, tantas realidades e imaterialidades a serem percorridas.

Às vezes gosto de pensar que o destino estava traçado, o caminho desenhado no chão, só me esperando trilhar.

O amor, o respeito e a admiração pelos povos originários nasceram das histórias encantadas de meu avô, cresceram nas outras histórias e escritos de homens e mulheres não indígenas que se aproximaram desses povos. Mas a entrega se deu no corpo a corpo, frente a frente, olho no olho, mão na mão com tanta gente valente e poderosa que me acompanham ainda nesse caminho cheio de aprendizados, atalhos, sustos, medos, confrontos, belezas, dúvidas, alegrias, conhecimento, arte e… histórias. Histórias guardadas na memória ancestral, semeadas com afeto em novos corpos e espíritos, repletas de vida, de ensinamento, de raízes que dão sustentação. Histórias que sorvem e carregam a seiva-alimento para que o ser vivo, seja qual for a sua forma – árvore, pedra, bicho, gente – cresça, floresça e dê frutos.

Em minha casa-aldeia-urbana, protegida pela pequena mata brotada de sementes longínquas, com árvores flores frutos pássaros, foram muitas, infinitas noites de histórias contadas por tantas vozes, de tantos lugares distantes e presentes. Minhas filhas tiveram e têm tantos avôs e avós que as fizeram e ainda fazem viajar por narrativas mágicas, cheias de surpresas e incógnitas, cheias de beleza e poesia. Os netos agora podem também beber dessa água fresca e boa que leva umidade e vida para dentro do corpo e dos sonhos, da alma imortal e infinita. E podemos, juntos, navegar pelos rios e percorrer as trilhas até as aldeias de parentes e amigos onde celebramos o encontro. Lugares onde o céu é próximo, presente, tocável, onde se pode enxergar além.

E são as histórias, as narrativas tradicionais de um tempo de poder, que não se enquadram nas definições que inventamos, nós, Povo da Mercadoria -como diz Davi Kopenawa Yanomami, que me provocam e me chamam a abrir a roda para que outras pessoas possam também beber dessa água. Vamos seguir aqui, nesse espaço de afetos e acolhimento, por algum tempo, nos permitindo escutar e viajar nas histórias de muitos povos indígenas de nosso país. São histórias que mantêm o céu suspenso, nos iluminam e permitem enxergar o que parece oculto “mas que sempre terá sido o óbvio”.

 

E para começar, convido vocês a ouvirem, na voz da amiga queridíssima Cristiana Ceschi, a História dos Wapté Criadores, narrada pelos anciãos do povo A’uwê Uptabi, os Xavante, há mais de 30 anos. Essa e outras histórias foram publicadas no livro pioneiro Wamrème Za’ra – nossa palavra, mito e história do povo Xavante (Editora Senac SP, 1998).

A narração de Cristiana é parte do acervo de programas “Aldeias Sonoras” realizado pela Ikore em 2012, disponíveis no site: www.ikore.com.br :

 

 

 

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